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Enem pra quem? Da periferia ao quilombo, estudantes relatam drama para entrar na universidade

A resistência do (MEC) Ministério da Educação em manter o calendário de provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) 2020 em meio à pandemia do coronavírus, escancara o abismo social que separa ricos e pobres no Brasil. Estudantes das escolas particulares e rede pública são dois lados da balança em desequilíbrio. A crise sem precedente na educação causada pela pandemia, que levou à suspensão das aulas, descortinou uma realidade que atinge milhares de brasileiros que sonham em entrar para a universidade pública, mas veem essa realização cada vez mais distante. *Até o fechamento desta matéria, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep – e o MEC não haviam decidido adiar as provas*

Enquanto o debate se arrasta, sem uma solução até aqui apontada pelo governo federal, que não seja a manutenção das provas, o Eufemea ouviu estudantes da rede pública para saber em que condições vão disputar uma vaga na universidade.

Filha de empregada doméstica, Francielle da Silva Araújo tem 19 anos, mora no bairro de Bebedouro, na periferia de Maceió, e vai prestar o Enem pela terceira vez. “Pretendo fazer Enfermagem, de preferência na universidade federal, ou conseguir bolsas nas particulares. Meu ensino fundamental e médio foram em escolas públicas”, ela conta ao informar que concluiu o ensino médio em 2018.

Apesar de se dizer privilegiada por “ter livros e acesso à internet em casa”, Francielle não se considera preparada para o Enem.

“Não me sinto preparada para enfrentar o Enem, assim como milhares de estudantes. Muitos estudantes das escolas públicas não têm acesso à internet e as aulas que algumas escolas estão disponibilizando a classe menos favorecida não tem usufruído, levando em conta que o ensino que a escola pública oferece não é tão forte” como o ensino de uma instituição privada. Então, a galera da rede pública sairá prejudicada”, ela diz.

E reafirma por que ricos e pobres estão em lados opostos da moeda. “Minha mãe é empregada doméstica e nunca teve condições de pagar um bom estudo para mim e meus irmãos. Então a gente sempre se virou com os estudos públicos. Ano passado tive a oportunidade de estudar isolada com a professora Taynara, como bolsista, e isso enriqueceu os meus conhecimentos, e então percebi o quanto que a educação pública precisa melhorar em relação ao ensino”, pontua.

No quilombo, o sonho com universidade

Da comunidade quilombola Caboclo, de São José da Tapera, no Sertão de Alagoas, Naiane de Souza Marques, 24 anos, também sonha em um dia poder ocupar uma vaga na universidade. Integrante do coletivo Rede Mulheres de Comunidades Tradicionais, ela vai fazer o Enem pela quarta vez.

“Pretendo fazer Psicologia, de preferência na Ufal, porque sempre foi um sonho pra mim. Sempre estudei em escola pública. Atualmente não estou estudando por enfrentar algumas dificuldades”, conta Naiane.

A estudante relata as dificuldades. “Embora precise me preparar para o Enem, tenho tido dificuldade com material de estudos que geralmente é mais pela internet por possuir conteúdos atuais, e infelizmente não temos internet de boa qualidade para todos e muito menos notebooks, tabletes que possam facilitar, então não estou conseguindo estudar como já deveria”, diz.

Sem dinheiro para fazer cursinho, ela fala que já não tinha aulas presenciais antes mesmo da pandemia. “Com a pandemia isso tudo só se complicou, porque não temos suporte para estudar. Falo isso como jovem de uma comunidade quilombola mal assistida”.

Questionada se está preparada para o Enem, ela é taxativa: “Eu não me sinto preparada. O ideal é que ele seja adiado até para podermos nos preparar melhor, buscar soluções para estudar. Com a pandemia é impossível sair de casa para estudar na casa de um vizinho com internet e notebook, não podemos fazer grupo de estudos para trocar conhecimento”.

De uma família simples, filha de pais separados, Naiane tem cinco irmãos. “Eu sempre morei na comunidade quilombola Caboclo. Nunca tivemos muitos recursos, minha mãe é agricultora e dona de casa, me criou sozinha porque meu pai e ela separaram quando eu tinha um ano de idade. Pra mim, minha mãe é sinônimo de força porque ela me ensinou a sonhar e acreditar que tudo é possível através da educação”

A jovem lembra que sempre estudou em escola pública. “E nunca desperdicei a oportunidade de aprender mais, tanto que em 2016 eu e minha irmã fizemos o Enem e financiamos o curso de Enfermagem. Infelizmente só deu pra concluir três períodos porque não deu pra financiar 100% e como o curso era em outra cidade e presencial, os gastos eram muitos, tivemos que desistir, até pela questão da minha mãe ter só o bolsa família, que mal dava para sustentar nossa família. Me doeu muito ter que desistir, mas não tive escolha”, relata.

O que Naiane não abandona são seus sonhos. “Permaneço acreditando que dias melhores virão. Meus sonhos eu vou realizar. Queremos estudar e o que precisamos é de oportunidades justas para todos, um mundo menos desigual. Todos nós almejamos uma vida melhor e na nossa comunidade não é diferente”.

Estudos pelo watsapp

Moradora do Benedito Bentes, na parte alta de Maceió, Wellyn Lovattelly, 17 anos, vai fazer o Enem pela primeira vez. Pretende fazer Psicologia na Ufal, que admira muito, e com o propósito, como diz, de ser sexóloga.

“Sempre estudei em escola pública. Minha rotina de estudos tá uma loucura porque eu não tenho estrutura para estudar em casa, computador, wi-fi e sem internet é muito complicado para mim. Utilizo mais o watsapp, mas não dá para fazer as atividades porque minha mãe põe créditos e eu tiro dos dados dela, mas só pega para isso mesmo”, ela diz.

As aulas presenciais, lembra, foram suspensas no dia 30 de março. “Tava tentando acompanhar as aulas on-line, mas tinha alguns assuntos que eu não estava entendendo, queria tirar dúvida com o professor, mas ele nem sempre está disponível”, afirma, ao dizer que o acúmulo de atividades lhe deixa ainda mais ansiosa.

E é enfática ao dizer: “Eu não me considero preparada para enfrentar o Enem de jeito nenhum, confesso. Fico meio triste porque eu queria muito fazer Psicologia e penso que adiar o Enem seria a melhor forma de ajudar as pessoas. Não só por mim, mas uma questão geral. Ou adia ou cancela”.

Filha de pais separados, desde os dez anos de idade, ela conta que a vida virou uma loucura. “Sempre busquei fazer muita coisa com medo de não ser nada. Busco coisas que me façam bem para não terminar enlouquecendo”, conta ela, que mora com a mãe e o irmão mais novo do que ela.

Niviane Rodrigues

Niviane Rodrigues

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