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“Seu cabelo é de bombril”: mulheres relatam ofensas e traumas por causa do cabelo

“O seu cabelo é de bombril”. Essa frase foi uma das frases ouvidas por várias mulheres negras – na infância, adolescência ou fase adulta – que possuem cabelo crespo e volumoso. O que muita gente não imagina é que expressões assim ofendem, machucam e traumatizam. Algumas mulheres ficaram marcadas e não “aceitam” o cabelo como ele é. Já outras conseguiram se libertar do padrão social e deixaram o cabelo ser quem ele é.

O assunto veio à tona quando ontem (17), quando a Bombril anunciou o relançamento de uma marca de esponja de aço chamada Krespinha. O produto era ideal para limpezas pesadas. A primeira vez que o produto foi lançado, no começo do século passado, era a caricatura de uma pessoa negra que estampava o produto. Após causar indignação, a Bombril emitiu uma nota afirmando que retirou o produto e pediu desculpas.

Entretanto, o que aconteceu fez com que o Eufemea buscasse histórias de mulheres que cresceram ouvindo frases que associavam o cabelo delas a esponja de aço. 

“Estou me amando”

A enfermeira Cynthia Kássia, de 28 anos, ainda lembra quando a história com o cabelo dela começou. Aos cinco anos, a mãe de Cynthia foi fazer um aniversário para ela e a levou no salão para reduzir o volume o cabelo.

De lá pra cá, Cynthia vivia fazendo o famoso relaxamento de raiz ou selagem. “O meu cabelo acaba caindo porque não tinha mais força”.

Mas a enfermeira queria manter um padrão de cabelo liso porque quando era criança, no colégio ou até mesmo no condomínio que ela morava, o apelido dela era: cabelo de bombril.

Cynthia cresceu ouvindo frases como essa e criou um preconceito contra si. “Algumas pessoas falavam que meu cabelo era bonito e eu não acreditava. Achava que ele só servia para lavar panela. Ou seja, o preconceito também estava em mim”.

Ela cresceu ouvindo ofensas e chorou diversas vezes por causa disso. “Eu sofria muito. Não gostava de sair, de me arrumar. Era horrível! Aquilo mexia muito com meu psicológico”.

Cansada de ser dependente do relaxamento e da selagem, Cynthia tomou uma decisão: se livrar da escravidão da química. Para isso, ela começou uma transição. “Tem quase dois anos que eu cortei toda química e no início de junho optei por assumir o meu black. Mesmo assim eu ainda tive medo das pessoas falarem”.

Hoje, Cynthia disse que ama o cabelo dela do jeito que ele é. “Não estou nem aí pro que vão falar. Estou me amando”, destacou.

Trauma foi criado por causa do cabelo

Michelly Amâncio tem 33 anos, mas ainda lembra a primeira vez que falaram do cabelo dela: foi na segunda série. A ofensa veio de uma professora. “Chega dá um nó na garganta”, desabafou emocionada.

“Ela fez uma atividade no quadro e pediu que os alunos fossem responder. Lembro da minha sensação de ir feliz responder a questão e fui lá. Aí eu voltando para sentar a professora disse: ‘Michelly, a sua letra é tão feia quanto seu cabelo’”, contou Michelly.

Aquele dia ficou marcado na vida dela. Afinal, Michelly era uma criança e ouviu isso de uma professora. “A turma toda riu. Eu cheguei chorando em casa”.

A prática se tornou constante na vida dela: os alunos riam do cabelo e falavam que o cabelo dela era feio e parecido com bombril.

Vanessa e Michelly

Michelly queria que o cabelo dela fosse liso igual das amigas da escola. “Eu soltava meu cabelo e queria ficar livre”. A partir daí, Michelly começou a alisar o cabelo com oito anos. 

“Um dia, meu pai me levou pro salão e cortou meu cabelo bem curto. Fiquei parecendo um menino. Meu cabelo era muito cheio e o pessoal começou a me criticar. Minha mãe sempre reforçava que eu não deveria ligar pro que falavam e eu até fingia isso, mas não era verdade”, disse.

Michelly contou a história ao Eufemea bastante emocionada e relembrou outro episódio marcou a vida dela: uma brincadeira numa festa de 15 anos que dizia o que o outro tinha de feio.

“Já sabia que iam falar de mim. A primeira coisa que a menina fez foi dizer: ‘eu não gosto do seu cabelo, ele é feio’. Quando caiu para que eu falasse algo feio dela, eu não sabia o que dizer porque ela era padrão”, disse.

As ofensas contra Michelly vinham de vários lugares: da escola aos salões de beleza. “Muita gente não queria pegar meu cabelo no salão porque ele era feio. Até que encontrei uma cabeleireira que tentou fazer com que eu aceitasse meu cabelo normal”.

Ela também contou que teve um reencontro do colégio recentemente e que dois meninos pediram desculpas pelo que faziam com ela. “Mas ao mesmo tempo, teve uma das meninas que era bem popular na época e continuou rindo de mim, dizendo que tomei jeito de arrumar o cabelo. Não me posicionei e me arrependo disso”.

Mesmo anos depois, Michelly não conseguiu se livrar do trauma e permanece alisando o cabelo. “Eu acho muito bonito quem consegue se livrar, mas eu não consigo. Você tem que ser forte”.

Cabelo ruim existe?

A jornalista Géssika Costa, 27 anos, começou a alisar o cabelo ainda na infância. “Eu tinha 9 anos quando minha mãe começou a alisar meu cabelo. Aqui em casa todo mundo alisava. Todas negras que alisavam”, contou ao Eufemea.

Géssika quando alisava o cabelo

O cabelo dela era volumoso, mas pela pouca idade, Géssika se espelhava na mãe e achava aquilo legal. “Dentro da minha própria família já escutava muitas perguntas relacionadas ao tipo de cabelo: ‘cabelo ruim, cabelo aperreado’”.

A jornalista não gostava das expressões, mas gostava de alisar o cabelo. “Era uma forma para amenizar o cabelo que não era aceito na sociedade”.

Na escola, a situação não era diferente. Nas brincadeiras, alguns termos eram utilizados e magoavam Géssika. “Eu dava chapinha no cabelo, e o pessoal dizia que eu não podia ir para a chuva que ele ia encolher. Só quando fui chegando no terceiro ano que conseguia me defender”.

A jornalista enfatizou que ficava triste com o que ouvia. “É algo que maltrata e fere a alma”, disse.

Só na faculdade que a jornalista começou a reconhecer a sua própria origem. “Fiz processo de transição capilar e hoje uso meu cabelo natural”.

Géssika disse ao Eufemea que quando alisava o cabelo que ouvia ofensas sobre o cabelo dela. Mas hoje, a situação é outra: as pessoas já conseguem chamar o cabelo dela de crespo.

“Quando eu alisava que as pessoas faziam piadas chamando de cabelo ruim, aperreado. Hoje as pessoas valorizam mais o meu cabelo”, reforçou. “Se eu ouvisse esse tipo de comentário reforçaria meu trauma, mas não me abateria tanto quanto antigamente. Porque eu já saberia me defender e retrucar o comentário. Fora que também procuraria a polícia”, acrescentou Géssika.

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Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.