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Mulheres relatam rotina de assédio em quartéis e lançam movimento: “Não vamos nos calar”

O que era para ser o desafio da foto em preto e branco, uma espécie de brincadeira que ganhou espaço no Instagram, acabou se tornando um movimento nacional de mulheres militares que denunciam a rotina de assédio nos quartéis no Brasil. Na postagem, a tenente-coronel do Corpo de Bombeiros de Alagoas, Camila Paiva, relata o drama das Marias, como ela denomina as policiais vítimas dos assédios nas corporações. O movimento, lançado pela oficial, é um grito contra o machismo e os ataques frequentes pelo simples fato de serem mulheres num universo ainda de predominância masculina. 

O relato ganhou força e muitas foram as mulheres a se dizerem encorajadas a denunciar o que sofrem nos quartéis. Em seu Instagram, Camila também postou um vídeo falando sobre o caso de áudios onde um militar do Ceará afirma que as policiais só servem para tirar o estresse deles.  

“Essa é a história de ‘Maria!!! Maria é militar, oficial, um certo dia ela estava na sala do seu chefe, um Coronel que acabara de ser promovido, então o coronel lhe disse: Maria, eu mereço os parabéns especial”, enquanto se aproximava dela e a encurralava entre ele e a parede. Maria, sem graça, nervosa e trêmula, não sabia o que fazer ou dizer e disse: ‘Chefe, como assim? Eu acho que o Sr está confundindo as coisas’. O Coronel a agarrou e tentou beijá-la à força. Maria tentou desvencilhar-se, empurrando-o e correndo para a porta e quando ela estava abrindo a porta pra fugir ele disse: ‘Cuidado com o que vc vai fazer ou falar, nada aconteceu aqui”, começa assim o relato de Camila, que viralizou. 

Tenente-coronel Camila Paiva
No Instagram, Camila conta a história das Marias vítimas de assédio; postagem viralizou e ela criou movimento nacional para encorajar outras mulheres a denunciarem

“Retrato da sociedade” 

Nessa terça-feira, 21, foi a vez da própria tenente-coronel Camila tornar público o que aconteceu com ela. Também no Instagram, relatou que teve uma foto sua de biquíni printada e divulgada via WhatsApp em um grupo de futebol de oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros de Alagoas, com mensagens ofensivas.  

Segundo Camila, um deles postou a foto e outro comentou: “Será que gosta de r…, essa aí?”. Ela diz que outros militares, amigos dela, repreenderam o ofensor, que apagou o comentário. “Mas já tinha sido feita a referência ao comentário dele como sendo ofensivo, então ficou gravado no print”, relata Camila. 

A oficial fez um documento relatando toda a situação e levou à Corregedoria da PM. “Também vou entrar na Justiça”, ela diz, ao revelar que não é a primeira vez que acontece. “Isso não acontece só comigo. Não foi um fato isolado. Acontece com várias mulheres; praticamente todas já ouviram coisas ofensivas contra elas ou contra outras mulheres, presenciaram algum tipo de assédio ou de abuso ou de importunação sexual, de desrespeito, machismo, preconceito. Isso com certeza todas já passaram e isso não é só em rede social, grupos de WathsApp. Acontece diariamente com as outras mulheres dentro dos quartéis”, diz Camila. 

“E eu não estou aqui falando do Corpo de Bombeiros de Alagoas. Estou falando das corporações militares do Brasil. Porque na verdade é o retrato da sociedade. Isso acontece nas corporações porque a sociedade é machista, mas como no militarismo cerca de 90% são homens, então é mais acentuado o machismo, a misoginia, o patriarcado é potencializado nesse ambiente”.  

A tenente-coronel Camila Paiva está há 18 anos no CB/AL e diz que esse tipo de abuso ocorre desde quando ela entrou na academia. “Percebi o impacto do ambiente machista, que é muito comum esse tipo de situação”. Porém, ela diz que o sentimento é de revolta. “Me sinto completamente revoltada, indignada, como mulher e profissional. Já não aguento mais, como muitas mulheres não aguentam, vê esse tipo de coisa e ficarem caladas. A gente precisa falar sobre isso, porque é muita indignação”, ela afirma.  

Legado para futuras militares 

“A estrutura hierarquizada contribui para que esse tipo de situação aconteça, porque existe essa relação muito forte de hierarquia e a mulher que é subordinada e assediada fica com medo de denunciar. Geralmente isso acontece quando estão somente o abusado e a vítima e muitas vezes a vítima não tem prova, então não consegue denunciar aquilo”, ela afirma. 

Camila ainda conta que o comandante-geral da PM telefonou para ela, “se solidarizando, dizendo que a Polícia Militar não aceita, não coaduna com esse tipo de situação e que vai ser apurado aos rigores da lei, com celeridade”. 

Ela diz que desde que a campanha foi lançada tem recebido “relatos do Brasil todo de mulheres policiais, bombeiras, inclusive de pessoas que não são militares, mas que passaram por algum tipo de abuso, assédio, importunação sexual, de desrespeito, machismo”.  

Afirma também ter certeza que o comportamento dela não infringe normas militares. Ao contrário. “Eu sou militar e estou subordinada a um regulamento e a uma legislação. Não há nada dentro do regulamento militar que diz que uma mulher postar uma foto de biquíni, no seu momento de folga, nas suas redes sociais pessoais, que isso seja algum tipo de transgressão. Não é”. 

“O meu comportamento é exemplar, sim, porque nunca fui punida por indisciplina, nunca manchei o nome da corporação. Muito pelo contrário, nas minhas redes sociais aqui em Alagoas as pessoas me veem como uma representante do Corpo de Bombeiros profissional, comprometida, que enaltece o nome da instituição. Tenho certeza, que de forma nenhuma eu venho trazer qualquer tipo de mancha para minha instituição. O que eu faço na minha vida pessoal e na minha privacidade, diz respeito a mim. Eu não vou para o quartel de biquíni. Eu não tiro foto na viatura de biquíni. Eu não tiro serviço de biquíni. Isso é no meu horário de folga”. 

Apesar do sofrimento, ela garante que a luta está só começando. “A gente vai continuar lutando e a gente tem a esperança de deixar um legado diferente para as mulheres que estão entrando na corporação, como também deixaram para nós as que nos antecederam, que abriram portas para que a gente hoje estivesse aqui. Tanto é que eu sou a primeira oficial feminina de Alagoas, entrei na corporação em 2002, primeiro ano que a mulher pôde concorrer ao curso para ser oficial. Foi graças a mulheres que lutaram por isso que a gente pôde adentrar na corporação e da mesma forma hoje nós estamos lutando para que as próximas que vierem não passem pelo que a gente está passando”. 

“Teste do sofá’, fotos printadas, mulheres acuadas 

Num relato carregado de emoção e revolta, a sargento BM Stephany Domingos também conta o drama das militares e traduz quem são as Marias descritas na campanha, ao pontuar diversos casos, citando as vítimas que têm medo de se identificar e sofrerem algum tipo de represália.  

A sargento BM Stephany Domingos conta que já foi vítima e diz que assédio vem de todos os lados, desde o subordinado até os de maior hierarquia
“Maria é a militar que estava fardada, de short ao término, feliz após pegar pódio em uma competição oficial até ver uma foto em que estava presente ser printada no Instagram oficial e compartilhada no grupo do seu quartel, com zoom em seu órgão genital e vários comentários maldosos”, descreve Stephany.  

Ao Eufemea, Stephany diz que “isso ocorre desde os primórdios. São tantos casos no decorrer da história das instituições militares que nem conseguimos contabilizar. Pra ocorrer basta ser mulher que eles acham que têm algum poder sobre nós. São casos frequentes que acontecem quando estamos de serviço, ou dentro dos nossos setores, ou dentro das viaturas, ou durante ocorrências, ou nos grupos de whatsapp, enfim… São casos muito variados e que cada mulher tem um relato específico pra fazer”. 

“Em grupos em mídias sociais eles frequentemente printam nossas fotos seja fardada, seja civil, e compartilham com os comentários mais maldosos, como foi o caso da TC Camila que o oficial falou ‘essa daí gosta de r…’”. 

“Fora dos ambientes virtuais, eles acuam mulheres, assediam, chamam pra sair, oferecem benefícios na escala ou etc se ela sair com ele, filmam suas bundas em treinamentos, as perseguem, passam a mão em suas pernas, insinuam “testes do sofá”, chegam de madrugada quando a militar está sozinha na guarda, ou até a agarra, enfim, as situações são as mais diversas possíveis”. 

O assédio surge de todos, desde os subordinados aos hierarquicamente superiores, segundo relata a sargento Stephany. “Os superiores tendem a abusar mais do poder, porém em alguns casos acontece com subordinados e pares também. 

“Teve uns áudios compartilhados em grupo de whatsapp de PMs do Ceará onde eles diziam que as PFems (policiais femininas) tinham que servir só pra tirar o estresse deles quando chegassem de ocorrências. Ele insinuou até revezamento de homens nesse áudio. Isso gerou uma indignação geral e então chegamos onde estamos hoje”. 

Questionada se já haviam procurando o comando da Polícia e que eles disseram, Stephany afirma:  “Sim, muitas mulheres entraram com processos que na maioria das vezes não deu em nada. Eu sou uma delas”.  

Como você se sente sendo mulher e militar numa situação como essa, indagou o Eufemea.“Me sinto perdida. Sinto uma dor que não tem tamanho, não só por mim mas por todas as minhas companheiras que passam por situações iguais ou piores do que eu já passei. Me sinto insegura, exposta. Sentia muito medo. Hoje o que eu tenho é um desejo enorme de lutar por essas mulheres e de fazer esses abusadores pagarem pelo que fazem”. 

Sargento BM Stephany
“Sentia muito medo. Hoje o que eu tenho é um desejo enorme de lutar por essas mulheres e de fazer os abusadores pagarem pelo que fazem”, sargento Stephany

Stephany reforça que o trabalho delas na corporação é pautado no respeito à hierarquia. “Sim, nossos pilares são hierarquia e disciplina, mas na hora do assédio e do abuso isso não existe. Nossas privacidades são invadidas todos os dias de todas as formas. Eles criaram até um termo: “jibosa”. É a mulher que eles compartilham entre eles com humilhações, comentários maldosos, zooms e etc”. 

A militar assegura que o caso será levado adiante. “Vamos continuar nosso movimento de #SOMOSTODASMARIAS incentivando mais mulheres a contaram seus casos, vamos juntar as provas que temos desses abusos e vamos buscar os meios legais de denunciar. Também estamos pensando em outras iniciativas para inibir esse tipo de ação nas corporações militares e vamos criar um grupo de apoio para essas mulheres militares terem a quem recorrer e se sentirem mais seguras”. 

“São mulheres militares espalhadas em todo o Brasil. O movimento se chama #SOMOSTODASMARIAS e começou com a TC Camila que vem incentivando a todas nós a lutar por nós e mostrar que estamos juntas e não vamos nos calar”. 

Comando da PM 

O Eufemea tentou contato com o comando da PM em Alagoas, mas até o fechamento da matéria não havia uma resposta. À imprensa local, o comando enviou a seguinte nota: 

O Comando da Polícia Militar de Alagoas recebeu na manhã desta terça-feira (21), por meio da sua Corregedoria-Geral, denúncia formalizada por Oficial do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas que versa sobre machismo e desrespeito cometido por oficial da PM-AL em uma rede social não oficial da corporação. Diante dos fatos apresentados, a PM-AL adotará as medidas necessárias para apuração da denúncia, reafirmando o seu respeito a todas as profissionais da Segurança Pública. 

Niviane Rodrigues

Niviane Rodrigues

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