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Escritora alagoana fala sobre desafios na pandemia e critica taxação de livros: “Às vezes, queremos vomitar o país”

Foto: Gabriel Bortulini.

Elas são escritoras, mulheres, nordestinas. São elas que encantam através dos textos e que se doam pelo amor à escrita. A profissão delas é ser escritora. O momento para elas não é fácil, já que o ministro Paulo Guedes enviou uma proposta de reforma tributária que colocou uma taxação de 12% em cima dos livros. E elas lutam contra isso. Na primeira parte da matéria, o Eufêmea traz o relato da alagoana Sara Albuquerque que conta sobre a escrita durante a pandemia, quais foram os desafios e sobre como ela se enxerga como mulher e escritora.

Sara contou ao Eufêmea que está há cinco meses em isolamento e que viveu diferentes impulsos artísticos para aliviar o sofrimento individualmente coletivo. “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?”, questiona.

Perguntada se durante esse tempo houve bloqueio criativo, Sara diz que foi de encontrar concentração em narrativas mais longas. “A realidade esmagando a ponte entre os olhos e os parágrafos; mas passei a ler muita, muita poesia, pela qual serenamente fui acolhida e me salvaguardei menos sozinha. O poema nos contempla pela urgência e, no Brasil, são 5.570 cidades em alerta aos vírus invisíveis a olho nu, o corona é só um deles. Escutemos as janelas, o trânsito em tráfego”, disse.

Foi no início de maio que Sara começou um processo de revisitação aos trabalhos de literatura infantil. A escritora publicou três livros infantis (Editais da Coleção Coco de roda). “A busca pela paciência da criança que se divertia ao montar quebra-cabeças? –, dedicando a eles uma disciplina que há muito não tinha, revisando-os e planejando novas propostas de edições futuras”.

Para ela, tem sido reconfortante retornar às obras publicadas (infantis e poemas). “E reconhecer dentro delas, de um lado, uma autora impulsiva e bem menos madura literariamente, e de outro, uma mulher sonhadora e corajosa que seguiu lendo e estudando e se legitimando a escrever, na medida em que validava seu corpo de mulher, sua existência e sua história num autoabraço não punitivo (nem todos as carícias são confiáveis, as “trinta moedas de prata” nos reforçam a lembrança) pelo qual a empatia com o mundo se pariu como consequência orgânica: minha arte não se pretende militante, mas é política, sim, e acredito nela como efetivo instrumento de transformação social”.

Segundo ela, sem leitura, “transcorre às mãos o risco de nos tornamos Hanna Schmitz, e nenhuma de nós deseja ter acesso à incompreensão culposa cujas ações nos levam a atrocidades – aos que têm memória curta: três cliques: “um”, “sete” e “confirma”: mais de 9,2 mil quilômetros quadrados de floresta amazônica desmatada só nos últimos 12 meses (uma área equivalente a seis vezes o tamanho do município de São Paulo), segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)”.

De maneira isolada, Sara reflete: “Lá fora, não dão trégua as “vidas perdidas”, por covid, por racismo, por ausência de acolhimento institucional, que, tão cansadas e impotentes, as angústias, por conta, esgueiram-se para longe dos olhos e são distribuídas da cervical ao sacro num desdobrar-se de agulhas ao longo de toda a dorsal e lombar que sublinham o S da escoliose, o S de “Sara Sofredora”, um amigo brincou comigo certa vez, dando-me uma tapinha onde? Nas costas”.

“A ironia é apenas mais um dos sentimentos desse “mundo vasto mundo”, se bem que Drummond já nos adiantou, gauche na vida, que o artista carrega mais que isso: duas mãos e O próprio sentimento do mundo; e então me lembro de Atlas, o titã condenado a sustentar nos ombros a abóbada celeste por toda a eternidade. Seremos nós, os que se deixam atravessar por todo esse caos, punidos a desempenhar estátuas de Rodin, nunca mais não pensantes, nunca mais desprovidos de sensibilidade porque fomos eternamente empalados no método cartesiano e, por isso mesmo, nunca mais sem as dores nas vértebras que nos impulsionam os ombros para frente, a força criativa escorrendo até os dedos com os quais escrevemos poesia? Ser humano é de uma responsabilidade intransferível, de domingo a sábado e, se eu me chamasse Nonato, seria uma rima, não uma solução”, acrescenta.

Sara também contou que, durante a pandemia, percebeu que o acesso aos trabalhos dela ficaria restrito ao meio virtual. Ela teve contratos de palestras literárias em colégios e instituições culturais parceiras suspensos, e ir aos Correios para enviar os livros autografados deixou de ser uma opção.

“E, além de usar o perfil do instagram @sara.albuquerque._ como o principal meio pelo qual mantenho contato com os meus amigos, passei a reutilizá-lo, de forma mais consciente, para duas finalidades: a primeira é servir de apoio à divulgação dos trabalhos de outros artistas que, menos privilegiados que eu (todo mês, cama, comida e antidepressivos garantidos), veem-se à mercê da implementação de políticas públicas por parte da Secretria Especial de Cultura – uma fria, o inverno de 2020 está terrível e, nesta semana, minha xará que o carrega de alcunha o expandiu do Oiapoque a Chuí; para completar, dizem que, também por esses dias, vai nevar aqui no Rio Grande do Sul, esse clima me assusta, esperneia a vulnerabilidade dos que não têm teto”.

Sara diz que os colegas artistas estão preocupados com o cenário atual – assim como ela – e reinventando a  própria forma de obtenção de sustento. “Porque desistir é coragem difícil, somos programados para tentar”, poetiza a escritora Jarid Arraes“, cita.

A alagoana reforça que em sites como Catarse, Benfeitoria, Apoia-se, é possível colaborar direta e solidariamente com a renda mensal de artistas mais vulneráveis e também junto às editoras e livrarias, que igualmente sofrem, na estrutura, com esse desmantelamento na educação e cultura: “há uma proposta de reforma tributária que objetiva aumentar em cerca de 12% o valor do livroe aí, você, consumidor final que o compra parcelado no cartão de crédito, de súbito, vai adquirir uma pilha deles agora que, graças à inflação, tudo está mais caro? Um tiro na ampliação do intelecto”, reforça.

Outro objetivo da alagoana na alimentação do perfil @sara.albuquerque._ e compartilhar as inquietações pandêmicas do dia-a-dia entre os cinco cômodos do apartamento, um grão de areia num país em plena devastação.

“Inclusive, tenho refletido muito sobre o uso emocionalmente inteligente dessa rede social (em potência, tóxica e nociva à saúde mental): o desafio é, a partir de então, ressignificar a plataforma enquanto portfólio para acesso aos trabalhos que venho criando em home officeescritora contemporânea brasileira trabalhando remunerada e exclusivamente com sua solitude na frente do computador, em casa, antes dessa pandemia, existe? Rapunzel desceu a torre faz tempo, estamos gritando pelos poros todos e temos que fazê-lo, pois não nos resta outra opção, inclusive, de retorno financeiro, seria maravilhoso se a sopa de letrinhas pagasse as contas, mas temos mais que estômago. Às vezes, queremos vomitar o país“, diz.

A escritora também está organizando em hashtags: na #leituraquesara, poesias autorais, o grito diante da tragédia política e institucional do “que país é esse?”; na #larinvitro, fotografias em representação ao corpo quarentenado; na #rededeapoioliteráriodasara, reflexões sobre a escrita criativa e divulgação de livros e eventos.

“Para começar em setembro, estou planejando um ciclo de projetos literários mensais: o primeiro deles são as vídeo-performances do meu livro de poemas “sete centímetros de língua” (Patuá, 2018), um convite à reflexão da sobrevivência das mulheres na sociedade patriarcial”, conta.

“No mais, neste início de agosto, passei a registrar um diário no projeto “Os dias e as noites”, organizado pela escritora Moema Vilela – uma página de diários pessoais, aberta a qualquer interessado que se sinta à vontade para partilhar suas vivências da quarentena. Mas, antes disso, em abril, relatei o dia 39 no Diário da pandemia, organizado pela escritora Julia Dantas, uma tentativa de reunir relatos daqueles que estão atravessando os tempos de coronavírus em Porto Alegre”,

Essa é a minha mais nova rotina: permanecer e trabalhar em casa e, daqui mesmo, estar atenta à poesia do mundo (a que me chega pelas obras de outros artistas e me ajudam a sobreviver; e as outras que me provocam em rastro de cobras – por ora, Ney, só me falta ver o couro de lobisomem – e me exigem virar poema, ou eu não durmo nunca mais).

Mulher na escrita
Foto: Davi Boaventura.

Sobre ser mulher e escritora, Sara diz que sente-se como uma “mulher que sabe que o corpo dela é tão somente dela assusta muito porque não permite que a reprimam”.

“Agora, imaginemos que essa mesma mulher, reconhecendo a sua potência, toma para si a legitimidade de manusear as palavras com a mesma liberdade que compreende a sua existência. Abracadabra tem poder – temem-se tanto as escritoras porque, não apenas sabemos disso, mas também faz parte do nosso trabalho provocar o mundo: o pensamento crítico é uma abóbora”, falou.

Por fim, a alagoana disse que já a mataram demais, antes da pandemia, além das mãos, do sentimento, ela carrega todas as cicatrizes das ancestrais. “Por isso, já que tenho o privilégio de poder cumprir o isolamento social, sim, eu fico em casa. Não apenas porque minha imunidade é escorreita, ou porque me pesaria demais a consciência de estar por aí sendo vetor de um vírus que já matou mais cem mil pessoas no Brasil. Permaneço em casa porque, enquanto artista, manter-me viva é um ato de coragem política. E enquanto mulher, manter-me viva é, em si, o meu maior ato de resistência“.

Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.