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Medo e importunação sexual: Maceió tem “apagão” de dados sobre crime contra mulheres dentro de ônibus

Foto principal: Maciel Rufino

O ano era 2018 e a produtora de moda Andreza das Neves Ferro, de 28 anos, pegou um ônibus para ir trabalhar na parte alta de Maceió. Ela não contava que passaria por um caso de importunação sexual dentro do coletivo. Ela disse ao Eufemea que estava sentada tranquila em um assento quando sentiu um sussurro perto do ouvido.

No início, ela não entendeu o que estava acontecendo, mas depois os sussurros se repetiram. Ela olhou para trás e percebeu que tinha um idoso. Incomodada, Andreza resolveu mudar de cadeira e sentou em outro local.

Não satisfeito, o homem foi atrás dela. Segundo Andreza, ele iniciou uma “movimentação rápida com as mãos, como se estivesse se masturbando”. 

Notando que estava acontecendo algo errado, a produtora de moda ficou em pé, próxima ao cobrador.

O idoso então levantou e sentou perto da supervisora de Andreza, que também estava no ônibus. Foi quando o cobrador percebeu uma movimentação diferente e perguntou a Andreza o que estava ocorrendo.

“Eu falei para ele que o homem estava sussurrando no meu ouvido e fazendo movimentos com as mãos. Também contei que achava que ele estava importunando a minha supervisora”, contou.

Imediatamente, o cobrador pediu que o motorista parasse o ônibus e falou em voz alta que o homem estava importunando a gente. O idoso foi retirado do ônibus, e o cobrador sugeriu chamar a polícia. Porém, os passageiros não quiseram, alegando que não podiam esperar o ônibus parado.

O que aconteceu com Andreza gerou medo e preocupação se as pessoas acreditariam nela, principalmente o motorista e o cobrador. 

Foto: Eufemea

Ela ressalta que a conduta do cobrador trouxe segurança para ela. “Ele levantou e falou que, sempre que acontecer algo com uma mulher, ela deve avisar para que se tome providência”.

Mesmo vivenciando esse caso e outros casos de importunação, Andreza não registrou um boletim de ocorrência. “Não fiz porque eu estava numa correria e percebi que ia acabar dando em nada. Também não denunciei nos outros casos que sofri”.

Importunação é crime

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão apontou que oito em cada dez mulheres já sofreram alguma situação de violência durante deslocamentos urbanos. O estudo apontou também que as mulheres são as mais vulneráveis em transporte públicos.

A importunação sexual é crime. A advogada criminalista e ouvidora da Associação Nacional da Advocacia Criminal em Alagoas (Anacrim-AL),  Marluce Oliveira, explicou que a importunação sexual é um crime enquadrado nos crimes de violência contra a liberdade sexual.

Foto: Cortesia ao Eufemea. Na foto, advogada Marluce Oliveira.

Segundo a advogada, o crime está no ato de “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.” A pena pode ser de 1 a 5 anos de reclusão.

O caso mais comum é o assédio sofrido por mulheres em meios de transporte coletivo, mas também enquadra ações como beijos forçados ou passar a mão no corpo alheio sem permissão. 

Fuga do ônibus

A administradora Ana Reis, de 28 anos, conta que parou de andar de ônibus porque perdeu as contas de quantas vezes sofreu importunação sexual.

“É muito triste. Não conheço uma mulher que nunca tenha sofrido um caso de importunação. Passei por tantos que não sei qual foi o pior”, relatou.

Ana Reis, vítima de importunação

Ana diz que, em um dos casos, as pessoas que estavam perto não ajudaram. “O ônibus estava cheio, e um cara começou a encostar em mim. Fiquei incomodada e mandei ele se afastar, mas ele não se afastou. Sentia que ele estava excitado e tinha vontade de chorar. Eu olhava para as pessoas e elas viam, mas não faziam nada”, lembrou.

Após alguns minutos, Ana desceu do coletivo. “Desci chorando. Com vergonha e nojo. Não fiz o boletim de ocorrência porque ninguém ia identificar esse homem e eu só teria mais raiva ainda… Não denunciei”.

Denúncia de passageiros
Foto: Divulgação

Alguns casos ganharam repercussão após terem sido denunciados. Um deles envolveu uma mulher que estava dentro de um coletivo da Real Alagoas, e um homem foi preso em flagrante após “se esfregar” nela. 

Conforme a polícia, o motorista solicitou a presença da Polícia Militar após ter sido alertado pelos usuários do transporte coletivo. A mulher de 20 anos contou que o passageiro se masturbou e ejaculou na sua roupa; além disso, portava uma faca para intimidá-la. Ele foi preso em flagrante, e a arma foi apreendida.

Outro caso aconteceu no dia 9 de janeiro de 2019, quando um homem identificado como Luiz Carlos começou a se masturbar, olhando fixamente para duas mulheres.

Ele estava em um ônibus que fazia a linha Benedito Bentes/Ponta Verde, via Gruta. Luiz foi preso pela polícia e levado para o manicômio judiciário para receber tratamento.

Subnotificação na capital

Ana e Andreza não denunciaram os casos, mas elas não são as únicas. Por medo, constrangimento ou pelo simples pensamento de “que não dará em nada”, muitas vítimas deixam o caso passar.

E como buscar soluções para um problema que sempre existiu, mas que não existem dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública? 

A SSP (Secretaria de Segurança Pública) diz não ter dados sobre os casos de importunação e que esse ‘apagão’ pode ser devido a falta de denúncias das mulheres ou porque a própria SSP, através do Núcleo de Estatística e Análise Criminal (Neac), não compila os dados.

A SSP informou que, caso haja algum caso em um coletivo, o número 181 pode ser acionado para passar informações. O órgão também reforçou que é necessário que as mulheres denunciem.

A pasta também afirmou que realiza ações dentro dos ônibus e, caso alguma mulher se sinta ameaçada por algum suspeito que esteja dentro do coletivo, ela pode relatar o caso aos policiais que abordarem o transporte.

(Veja abaixo as principais diferenças entre importunação e assédio)

Foto: Eufemea
“Vítimas não levam denúncias adiante”

É difícil não encontrar uma mulher que não tenha uma história para contar sobre algum tipo de importunação que sofreu dentro do coletivo. Na prática, não há um monitoramento ou sistema efetivo que permita às vítimas denunciarem as situações.

A advogada e presidente da Associação Para Mulheres (AME), Júlia Nunes, disse que a associação já recebeu várias denúncias de importunação sexual, mas que as vítimas preferem não levar adiante.

Júlia Nunes, advogada

“Infelizmente elas não denunciam por achar que não vai dar em nada ou por medo de serem identificadas pelo agressor”, explicou Júlia.

Ela também lembrou um sentimento que toda mulher tem em um coletivo. “Independente do horário elas são importunadas. A população vê, o cobrador identifica a ocorrência, mas quase sempre nada é feito”, diz.

Instituições precisam funcionar

Para a advogada Anne Caroline Fidelis, a segurança não passa apenas pela punição, mas por uma conscientização coletiva de que os corpos das mulheres não podem ser utilizados como instrumentos de prazer alheio.

Confira um trecho da entrevista com Anne Caroline abaixo:

Entretanto, Anne afirma que percebe que a cada dia tem havido uma preocupação maior das instituições no sentido de combater o crime: seja através de campanhas ou de políticas públicas.

“Mas é preciso que as instituições funcionem porque não adianta falarmos sobre as denúncias se as instituições não funcionarem no pós-denúncia. Tanto as instituições da Segurança Pública como também o sistema de Justiça”, afirmou Anne.

Foto: Cortesia. Na foto, advogada Anne Caroline;

A advogada diz ainda que seria fundamental que existisse um anuário ou boletim mensal para ser utilizado como um parâmetro para políticas públicas.

“Existe uma subnotificação tremenda porque não existe a denúncia, mas é importante que tenhamos os dados para que elas forneçam diretrizes para políticas públicas com o objetivo de garantir a segurança das mulheres”.

Motoristas e cobradores passam por treinamento

Para combater os casos de importunação dentro dos coletivos, algumas medidas são tomadas. Uma delas é um curso de qualificação que os rodoviários passam para prevenção ao assédio por meio de uma parceria do Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Maceió (Sinturb) com o Sest Senat, desde 2019.

A técnica de formação profissional do Sest Senat, Yanna Crysley, explica que o curso é ministrado anualmente e que os motoristas e cobradores já vivenciam na prática isso. “Nós oferecemos a teoria, e eles têm a prática. E em cima dela, vamos construindo a conscientização e dando a importância do assunto”.

Os motoristas e cobradores são orientados que, caso presenciem algum caso de importunação, tomem medidas. “No ano de 2019, 700 trabalhadores de transporte foram capacitados”, informou Yanna.

Além da capacitação, outra medida que o Sinturb adotou são as campanhas, como a “Assediador, o ônibus não tem lugar para você”, realizada este ano. 

Para o Sinturb, é importante que a mensagem esteja clara e visível nos ônibus, com o intuito de tentar coibir essa prática, bem como de conscientizar a todos sobre a importância de denunciar esses crimes. 

Foto: Sinturb

O sindicato acredita que pela repercussão na mídia, as denúncias estão se tornando cada vez mais frequentes. Por meio de nota, o Sinturb disse que muitas vezes, as vítimas sentem vergonha e medo de registrar queixas, mas que vendo campanhas como essas,  mostram que elas não estão sozinhas, e que é necessário denunciar.

O presidente do Sinturb, Guilherme Borges disse que a ideia é conscientizar a população sobre o crime. 

“Queremos que o transporte coletivo seja um lugar seguro para todos, pois é um serviço essencial para o pleno funcionamento da sociedade. Com a campanha, queremos mostrar que esse tipo de comportamento não tem espaço nos ônibus”, concluiu.

Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.