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Minha Experiência: ‘O luto faz a gente prestar atenção no que a gente não prestava’

O luto faz a gente prestar atenção no que a gente não prestava. É exatamente assim que me sinto três dias após o falecimento do meu tio Raí. Ontem, revisitando algumas conversas nossas, percebi que ele sempre me incentivou e reforçou que eu tinha uma missão no mundo através da escrita. E é por isso que escrevo esse texto para ele.

Meu tio Raí era uma pessoa intersexo (pessoas que naturalmente desenvolvem características sexuais que não se encaixam nas noções típicas de sexo feminino ou sexo masculino) e sofreu muito por causa disso. Foram muitos comentários e olhares maldosos. Por causa disso, meu tio vestiu uma capa de ser forte e sempre rebater o preconceito do outro através de uma postura firme, mas eu sei que ele cansava.

Nem sempre meu tio foi Raí. Ele tinha um nome feminino e carregou esse nome durante anos. Foi somente após o câncer de mama que ele teve, que o nome e o gênero foram mudados (recordo-me que ele ficou radiante de felicidade quando isso aconteceu). No entanto, não ache que isso amenizou o preconceito. Mesmo com a mudança, muitas pessoas e profissionais da saúde (dos hospitais que ele ficou internado), os chamavam de ela.

Hoje, ao escrever esse texto, percebo que ainda bem que tive a sorte de ter sido sobrinha dele. Foi por causa dele que aprendi a conviver todas as pessoas sem distinção. Meu tio, através da sua história de vida, me mostrou quais são as dificuldades e dores que uma pessoa LGBTQIAP+ passa. E não só isso: ele também me mostrou sobre quais são as dores que uma pessoa com câncer enfrenta.

Dentro da minha família nunca houve espaço para o preconceito. Mas sempre houve espaço para que fôssemos a voz daqueles mais ‘excluídos’ e vistos como diferentes na sociedade.

Apesar do meu tio ter tido câncer e ter tido uma longa batalha, não quero lembrá-lo dele assim. Guardo algumas lembranças dele que quero compartilhar com vocês neste texto:

Ele era fã de Madonna e por causa dele, eu comecei a amar a cantora. Foi ele que me apresentou a música Thriller do Michael Jackson e todos os filmes de terror (incluindo o exorcista). Juntos, nós assistimos quase todas as temporadas de The Walking Dead (infelizmente não deu tempo dele acompanhar a última) e fazíamos pipoca para acompanhar os episódios.

Ele me deu casa quando precisei, transformando o apartamento dele que era pequeno em um espaço que eu me sentisse confortável. Ele me ajudou inúmeras vezes durante a faculdade. Torceu como ninguém quando eu concluí a graduação e fazia questão de falar sobre mim em todos os lugares. Ele me ligava pedindo ingresso para ir aos shows e ao teatro, e o último ingresso que eu dei a ele foi da peça O vendedor dos Sonhos.

Como sagitariano, tinha um amor enorme pela vida e era muito intenso: falava alto, ouvia música alta e gostava de viver. Amava coca-cola e chocolate. Hoje, três dias depois da partida dele, fico pensando que meu telefone não vai mais tocar para ele falar por horas e repetir os assuntos como fazia. Que eu não vou mais compartilhar minhas matérias com ele e que as festas da família não serão as mesmas.

Tem um bolo na minha garganta toda vez que eu lembro dele. Entendo que era a hora dele e que sua missão foi cumprida. Mas fica essa saudade doída no peito por tudo que ele representou e fez por mim. Fica também o pensamento de tudo aquilo que não deu tempo dele fazer.

O luto faz a gente ter pressa para viver e faz a gente refletir sobre o AGORA, mas também sobre o amanhã. O luto me fez perceber que nós precisamos viver, sem lamentar tanto, sabe? Que agradecer precisa ser uma rotina diária. Agradecer pelas coisas mínimas.

Esse mesmo luto me fez ter medo do câncer por causa de tudo ele fez com meu tio nos últimos dias de vida. Esse luto me fez remexer as minhas conversas com ele e de querer todas as fotografias possíveis. Esse luto me faz perceber que eu entrei na especialização certa: gênero, direitos humanos e sexualidade, e que ela não veio realmente do ‘nada’. E que também tenho missão de lutar por um mundo melhor para pessoas LGBTQIAP+.

Tio, não deu tempo de te entregar um livro meu autografado, nem de comentar contigo o final de The Walking Dead; também não deu tempo de você me ver casando (como você vinha cobrando); não deu tempo de passarmos mais um natal juntos e nem de reclamar que a vovó estava falando demais na oração, mas deu tempo de colecionar milhares de memórias ao longo dos meus 30 anos (inclusive a do seu último aniversário que comprei aquele bolo que você não pôde comer).

Você foi embora com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida que me acompanhou por anos. Te dei essa imagem como meu último presente porque o último presente que você me deu foi um colar de Nossa Senhora Aparecida no meu aniversário de 30 anos.

Espero que você esteja bem, em paz, e que aí em cima seja bonito (que tenha um mar, inclusive). Espero que tenha Coca-Cola e chocolate, e que deixem você ouvir música alta porque para mim, o seu céu é assim.

Obrigada por tudo.

Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.