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Advogada trans, Luz Vasques, fala sobre aceitação e preconceito: “há sofrimento, mas o que prevalece é a vontade de se manter uma família”

Discreta, Luz se apropriou do uso de máscaras com a pandemia e hoje as utiliza para se proteger não apenas do vírus, mas dos olhares atravessados de julgamento e medo que recebe. E não foi apenas esse legado que a reclusão lhe deixou, o período introspectivo foi um propulsor para que ela viesse a expor socialmente uma questão antiga que sempre lhe trouxe sofrimento: a vivência como uma mulher trans.

“Não acordei um dia e decidi mudar nome, roupas, venho num lento processo de uma jornada, estudando, reunindo ferramentas e se fortalecendo até chegar ao momento de socialmente expor o que hoje na nossa sociedade se entende como uma imagem feminina”, conta Luz. “Hoje os diálogos estão muito avançados, apesar de toda violência e preconceito da sociedade, é inimaginável que eu pudesse pensar que na minha adolescência, por exemplo, viesse a ter essa quantidade de informação e de opções que se têm hoje”, completa.

Foto: cortesia

Ela revela que por medo e necessidade de aceitação sempre tentou se adequar às expectativas dos familiares e da sociedade como um todo e, ao lutar contra si, parou de se reconhecer. “A mulher em mim surge criança, em minha curiosidade e interesse pela história das mulheres da minha família, os sonhos, as fotos, os diários, pinturas da minha mãe, as palavras e frases de tias e avós. Eu “vejo a mulher” em mim nos livros, músicas, nas personagens, artistas, pensadoras e professoras que me emocionaram me emocionam, me constituíram e me constituem como pessoa: os seres humanos que construíram e encantaram minha alma são chamamos de “mulheres”, afirma Luz.

“Infelizmente durante muitos anos minha identificação como que é entendido por “feminino” foi considerada errada e de todas as foram duramente combatidas, reprimidas e “corrigidas” – seja pela violência de estranhos ou em nome do meu “próprio bem” por pessoas que me amavam e a seu modo queriam me proteger. Na minha necessidade de aceitação – que sempre foi muito grande – e no medo da solidão e da violência, eu explorei outros mundos, batalhei por uma imagem e comportamento “masculinos”, tentei de todas as formas me adequar, em algum momento consegui e neste mesmo momento entendi que estava sozinha dentro de mim”, completa.

Luz diz que toda a sua vivência e o entendimento sobre os riscos sociais a transformaram numa pessoa muito discreta. “Sou muito reclusa, considero tudo um risco, vivo de máscara, uso roupas discretas, meus amigos são os que carrego há vinte anos, procuro não chamar atenção, me divirto na intimidade da casa de amigos, evito casas noturnas e lugares onde sinto que estou em perigo, frequento lugares onde me preservo de violências, o que acaba também me privando de algumas alegrias”, pontua.

Ela tem 37 anos, é advogada há dez e escolheu a faculdade de Direito, segundo ela, por uma tradição familiar, já que é filha de juristas e há vários juristas na família. Em sua carreira, percebeu que o que mais gostava era o atendimento, ouvir as histórias dos seus clientes e isso a levou à segunda graduação em psicologia que está em curso. “Eu escrevo, desenho, sou muito sensível, então na advocacia era eficaz, mas sem paixão. A psicologia veio de ser mais útil onde brilhava mais, na advocacia brilhava no atendimento pelo interesse em ouvir o outro, as pessoas se sentiam à vontade em me contar a vida, aos poucos foi vendo que essa capacidade poderia ser explorada profissionalmente”, confidencia.

A advogada faz questão de destacar que, apesar de vir de um lar de oportunidades, de privilégio social, ser branca, de classe média alta, sentiu e sente o preconceito mesmo que atos sutis. “É muito importante que sigamos reconhecendo os nossos privilégios, pois as experiências atravessadas por mulheres trans pretas e periféricas são brutais. Quanto a mim, sempre fui uma criança adulta, tinha um apelido que era o “número 1”, por ter prestígio de intelectualidade e foi doloroso ver que ao passar para o pronome feminino perdi esse olhar de repente, não era mais brilhante, um olhar de decepção que faz com que tenha que me esforçar ainda mais para provar meu valor”, pontua.

“Fui de um extremo a outro, da número 1 para: que vergonha! Sentir isso, mesmo que sutilmente, das pessoas que me amam e da sociedade em si, dói porque existe um desprestígio com a feminilidade que te incapacita, te faz ser um corpo, bonita ou feia”.

“A disforia é um tópico sensível e não é necessário ser trans para sentir a pressão: estamos em uma sociedade disfórica e em algum nível, vivemos em um mundo onde todo corpo é artificial e a exigência sobre nossa aparência é impossível de dar conta. Busco ferramentas disponíveis para me sentir confortável, faço tratamento hormonal no espaço Trans da Ufal com a Dra. Izabelle, pratico atividade física e utilizo a moda como aliada. Há mais felicidade em buscar meu estilo do que em buscar “ser bonita”. Amo usar terno e alfaiataria”, ela diz.

Luz atua na Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB Alagoas e, esse ano, foi homenageada no dia da mulher. “Gosto muito de estudar, o estudo me salva, na companhia dos livros nunca estou só, amo me produzir para estudar. Procuro estender meu privilégio falando sobre diversidade, procurando criar oportunidades, mostrando que mulheres trans são diversas. Aproveito que tenho alguns acessos facilitados para tentar desmanchar os estigmas, o preconceito e estendendo a minha luta com palavras”, encerra.

Foto: Cortesia ao Eufêmea
Meline Lopes

Meline Lopes

Jornalista, advogada, especialista em comunicação e em marketing digital. Atuou como repórter de televisão durante 9 anos em diversas emissoras do Brasil. É repórter do Eufêmea.