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A parábola da Verdade saindo do poço e o PL das Fake News

Um belo dia, a Verdade e a Mentira se encontraram. A Mentira disse à Verdade:

  • Hoje é um dia maravilhoso!
    A Verdade olhou para o céu e suspirou, pois o dia estava realmente lindo.
    Elas passaram um tempo caminhando juntas e acabaram num poço.
    A Mentira, tentando convencer a Verdade, disse:
  • A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!
    A Verdade, desconfiada, testou a água e descobriu que realmente estava muito gostosa. Elas se despiram e começaram a tomar banho. Sorrateiramente, a Mentira saiu da água, vestiu as roupas da Verdade e fugiu. A Verdade, furiosa, correu nua para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.

O Mundo quando viu a Verdade nua, desviou o olhar com desprezo e raiva. Envergonhada, a Verdade voltou ao poço e se escondeu para sempre nele. Desde então, a Mentira viaja pelo mundo vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade, porque o Mundo não suporta encontrar a Verdade nua.

Existe um outro desfecho para essa parábola: “A verdade se recusou a usar as vestes da mentira. E por não ter do que se envergonhar, saiu nua a caminhar pelas ruas. E desde então, aos olhos de muita gente, é mais fácil aceitar a Mentira vestida de Verdade, do que a Verdade nua e crua.”

Essa narrativa alegórica traz uma analogia ao debate sobre a regulação das plataformas digitais, o PL 2630/2020, mais conhecido como PL das Fake News (do Inglês, notícias falsas).

O objetivo desse projeto é regular as notícias falsas e os discursos de ódio que circulam na internet. O debate em torno da aprovação desse PL trouxe a ideia de que se trata de censura e o fim da aclamada liberdade de expressão, uma conquista extremamente importante para toda sociedade livre e democrática.

Historicamente, os governos autoritários limitavam a liberdade de expressão porque não toleravam a verdade ou a crítica. Qualquer um que manifestasse seu pensamento sofria forte repressão. A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, reconhecido em muitos países do mundo e está inserida na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Poder dizer abertamente o que pensa, sem correr o risco de ser preso, torturado ou morto é um valor democrático inalienável.

A problemática está nas distorções que ocorrem na aplicação desse direito. O PL não trata de restrição à mídia, nem de dificultar o acesso à informação, pelo contrário.

Ele pretende fiscalizar e impor sanções a todos aqueles que utilizarem as plataformas digitais para transgressões. Qualquer pessoa no Brasil pode manifestar seu pensamento.

Entretanto, a observância de normas existe mesmo em espaços democráticos. A liberdade de expressão não nos autoriza manifestar opiniões homofóbicas, racistas, xenofóbicas, injuriosas, caluniosas, difamatórias, nem usar fingimento e mentira para a prática de estelionato ou outros golpes, nem incitar violência nas escolas. Esse direito valioso não é condescendente com a prática de crime. Aqueles que não usam as redes sociais para cometer delitos podem ficar tranquilos, sem medo de censura ou retaliação.

Quem já foi vítima de ataques ou golpes nas redes sociais, cujos usuários criminosos não sofreram qualquer tipo de punição, certamente vai compreender o valor desse marco regulatório.

A regulação tem a função de fiscalizar o cumprimento das normas, garantindo a proteção nos mais diversos contextos: a Febraban (bancos), a Anvisa (vigilância sanitária), Inmetro (produtos), Ibama (Meio Ambiente) etc. A preservação da vida em sociedade depende da observância das leis e a regulação faz parte da organização social.

Isso não significa que vivemos numa censura. Somos inteiramente livres, mas devemos utilizar a liberdade de modo ético e como fator de proteção e não para aniquilamento das pessoas. Aceitar a Mentira circulando vestida de Verdade é abrir a porta para as injustiças.

Não é possível a construção da sociedade em cima de inconsistências, concepções enganosas, que podem resultar em atrasos no tratamento de doenças, manipulação de pessoas, prejuízos econômicos, confusão intelectual e escarnecimento e achincalhe de biografias.

A Verdade nua pode incomodar o mundo por ser inconveniente, perturbadora, preocupante, talvez por ser independente da nossa vontade. Por isso, olhar para ela requer coragem. Mas o que é verdadeiro permanece e esse caminho é o que garante nossa sobrevivência. Sem verdade não há civilização.