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A poesia como segundo plano: desvalorização de poetas profissionais e a instabilidade financeira

E se esbarrar com um recital de poesia na rua, a caminho do trabalho, fosse tão comum quanto é ouvir música por aí? E se folhas com poesias estivessem espalhadas em pontos da cidade e sendo vendidas por unidade? E se, num sábado de folga, ir a um show de recitação poética que teve os ingressos esgotados fosse tão natural quanto é assistir um cantor famoso? E, se assim como a multidão se transforma num coral entoando todos juntos dezenas de canções, também declamassem?

Na série “Anne with an E”, a protagonista Anne recorre aos poemas para juntar dinheiro e conseguir comprar sua passagem. Ela se aproxima das pessoas, oferecendo o seu serviço poético e segura nas mãos o seu chapéu para as pessoas contribuírem colocando moedas dentro dele.

Se você não assistiu essa série, imagino que tenha pensado que a poesia foi a última opção da Anne. Mas, muito pelo contrário! Sempre foi a primeira e, aliás, muitas vezes era o escape dela para fugir da dura realidade, criando novas possibilidades no imaginário.

Num cenário real, quantas vezes já vimos no centro da cidade alguém declamando poemas pra conseguir um “trocado”? Sinceramente, nunca presenciei na minha vida, até onde me recordo. Por outro lado, já esbarrei com muita gente cantando, tocando um instrumento ou vendendo suas pinturas.

Certamente, muitos de nós já conhecemos pelo menos uma cantora que recebeu um cachê pra cantar num barzinho ou uma musicista que tocou seu instrumento num casamento.

Onde estão os escritores? Cadê o público que aprecia a literatura? Quem pagaria para ouvir declamações? As pessoas entendem a importância de ir a uma roda de conversa em que a autora de uma obra literária comenta sobre seu trabalho e compartilha sua história?

São muitas razões que tornam a realização desses eventos coisa rara. A exemplo da falta de incentivo nas escolas — estimular a prática da leitura é muito distante de instigar a apreciação. Temos lembranças das danças juninas no colégio e das músicas natalinas. Raridade é quem criou memória de apresentação de cordel.

O que não se vê, não desperta interesse. Aquilo que é visto, atrai e se torna conhecido. Se um dia, setores públicos e privados tomarem a iniciativa de inserir na agenda cultural dos fins de semana saraus de poesias aos montes, por consequência, vão surgir nomes na literatura que até agora estão escondidos.

Existem muitos sonhos engavetados, porque poesia só por amor não coloca o pão na mesa e nem paga aluguel. Tem quem trabalha rimando com as palavras, mas o contrato não chega enquanto enxergam a escrita artística como apenas um hobby.

Uma parcela de escritores apanharam seus sonhos guardados na gaveta, removeram a poeira e os colocaram no mundo. Por vezes, olham pra gaveta e pensam em colocá-los lá de volta. Mas seguem, com fé no poder das palavras e que o reconhecimento um dia vem.

O caminho é mais longo para o poeta, mas como disse Clarice Lispector, “A vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real.”

Lelê Alcântara

Lelê Alcântara

Jornalista e apreciadora de expressões artísticas. Utiliza a Comunicação como forma de valorizar a cultura, dar voz às artistas independentes e desenvolver senso crítico sobre o impacto da arte na construção social.