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Como a cultura patriarcal influencia no aumento de casos de estupros o Brasil

Em 2022, o Brasil registrou o maior número da história de casos de estupro, incluindo os estupros de vulneráveis, com um total de 74.930 vítimas, de acordo com os dados apresentados na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Esses números levantam questões sobre a existência de uma verdadeira Cultura do Estupro no país. A primeira vez que o termo “Cultura do Estupro” foi utilizado, data-se da década de 1970 pelas feministas norte-americanas.

E por qual motivo o país vive essa cultura? Vamos analisar alguns dados?

  • A taxa de estupro e estupro de vulnerável aumentou em 8,2% em relação a 2021, alcançando a marca de 36,9 casos para cada grupo de 100 mil habitantes.
  • As crianças e adolescentes continuam sendo as maiores vítimas da violência sexual, representando 61,4% do total de vítimas de estupro. É alarmante observar que 10,4% das vítimas tinham entre 0 e 4 anos, 17,7% tinham entre 5 e 9 anos e 33,2% tinham entre 10 e 13 anos. Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade.
  • Mulheres negras são as principais vítimas da violência sexual, com 56,8% do total de vítimas sendo pretas ou pardas. Além disso, houve um aumento em relação ao ano anterior, no qual as vítimas pretas ou pardas representavam 52,2% do total. As vítimas brancas correspondem a 42,3%, indígenas a 0,5% e amarelas a 0,4%.
Foto: Anuário de Segurança Pública
  • Destaca-se que 88,7% das vítimas de estupro são mulheres
Cultura vinculada ao passado
Foto: Cortesia

O Eufêmea conversou com Elvira Barretto, professora e pesquisadora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, além de ser ativista feminista e militante dos Direitos Humanos. Segundo ela, a cultura do estupro é uma realidade no Brasil.

De acordo com a professora, a cultura do estupro está vinculada ao passado colonial escravocrata e à cultura patriarcal e machista, que persiste até os dias de hoje. Ela menciona o sofrimento das mulheres negras que eram consideradas objetos de propriedade dos donos das fazendas e que, além de outras violências, eram sistematicamente estupradas.

“Esses corpos desrespeitados, invadidos e violados são, historicamente, hipersexualizados. As mulheres negras eram responsabilizadas pelas mulheres brancas e pelos homens brancos pela suposta sedução do ‘senhor’. O comportamento violento dos senhores brancos, donos das escravas e escravos, não era questionado. A hipersexualização das mulheres negras advém dessa criação para justificar o estupro. Assim, o sexismo e o racismo fundamentam a cultura do estupro no Brasil”, explica a professora.

A professora disse que o crescimento dos casos de estupro está associado a alguns fatores, dentre eles, o direito de denunciar. “Um dos aspectos a ser considerado diz respeito à conscientização das mulheres sobre o direito de denunciar, tendo em vista o fortalecimento dos movimentos de mulheres e feministas, e assim, a adesão de boa parte da sociedade, em especial das mídias”.

Mas, segundo ela, além desse vetor, há outro aspecto significativo que diz respeito à cultura que envolve a socialização dos homens.

“O incentivo à virilização da vida de corpos masculinos, cujo modelo ideal de ser homem envolve a satisfação sexual sem limites, o direito de ser proprietário de corpos femininos, entre outros. Em outras palavras, desde a sua infância, os meninos convivem e são normatizados para responderem a essa cultura machista, a fim de serem aceitos e aplaudidos como ‘garanhão’ e ‘pegador'”, reforça.

Para ela, falta uma discussão no âmbito da política de educação a respeito da igualdade de gênero e da sexualidade numa perspectiva de autocuidado, de cuidado mútuo, de responsabilidade e de direitos. “Quando falo de uma política educativa para igualdade de gênero, é com base em dados reais. Não é por acaso que a grande maioria dos autores de estupro são pessoas do sexo masculino”.

É preciso mudar o comportamento

Já a professora do curso de Direito da Faculdade Cesmac, assistente social do Tribunal de Justiça de Alagoas e doutoranda em Direito pela Universidade Nacional Mar del Plata/Argentina, Olivia Monteiro, reforçou que “não adianta ter grandes leis se não conseguimos mudar o comportamento das pessoas que está atrelado ao processo patriarcal”.

“Hoje, ainda enfrentamos um grande empecilho, mesmo com todos os avanços: a cultura patriarcal que impede o pleno desenvolvimento das políticas. Inclusive, dentro do próprio Poder Judiciário, encontramos traços de machismo. Você percebe que, quando uma mulher busca uma medida protetiva, às vezes, é necessário acionar o ciclo de amizades para garantir que ela seja devidamente atendida”, comenta.

Sobre as mulheres negras serem as principais vítimas, Olívia diz que a violência contra a mulher também tem um recorte racial, visto que as mulheres negras são um alvo maior devido à sua situação de vulnerabilidade social e educacional. “Muitas vezes, elas são colocadas em subempregos ou em situações de decadência financeira.”

Homem foi ensinado a ter ‘liberdade sexual’
Foto: Cortesia

Carle Correia é terapeuta de mulheres e desenvolve um trabalho focado nas mulheres que passaram por traumas. Ela enfatizou ao Eufêmea que muitas pessoas têm o entendimento de que o estupro só acontece quando há penetração, mas na verdade, “é qualquer atitude de cunho sexual realizada sem a autorização da vítima”.

Ela disse que o homem foi ensinado a ter “liberdade” sexual e que isso contribui para que esse homem ache que deve ‘pegar o máximo de mulheres possível’, e a mulher, consequentemente, se torna um objeto sexual, sendo vista como um corpo que não tem direito ao não.

“Sendo assim, criou-se uma armadilha em que se um homem vê uma mulher sozinha, ele ‘não consegue se controlar’ e sente que deve ter relação sexual com ela, independentemente de ela querer ou estar inconsciente, como foi o caso dessa semana em que um homem viu uma mulher desacordada, bêbada, sentada na calçada e a estuprou”, disse.

Para ela, é fundamental que haja uma reeducação do homem. “O homem precisa compreender que é um ser humano em construção diária e não uma máquina sexual nojenta e grotesca.”

Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.