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Mulheres denunciam rotina de abusos em comunidades religiosas

“Construa sua base”, “aumente seu rebanho”, “molde suas mentes”, “prometa a eternidade”, “controle sua imagem” e “torne-se imortal”. Esses poderiam ser apenas os mandamentos básicos roteirizados pela Netflix em sua produção “Como Se Tornar um Líder de Seita”. A série, que examina as mentes astutas de Jim Jones, Charles Manson e Marshall Applewhite, compila truques usados por alguns desses mundialmente conhecidos falsos líderes religiosos.

Acontece que eles nem sempre esses falsos líderes são conhecidos e divulgados e, o que é pior, podem estar mais próximos de nós do que imaginamos (ou gostaríamos). O Eufêmea conversou com mulheres que revelaram a rotina de abuso que elas vivenciaram em comunidades religiosas.

Por padrão, esses líderes costumam usar duas vantagens sobre suas vítimas: o sentimento prazeroso do pertencimento em comunidade e a vulnerabilidade do momento.

Foi exatamente assim que aconteceu com duas brasileiras que se mudaram para Argentina, para cursarem a universidade. Ambas eram evangélicas, e as duas jovens estudantes não se conheciam. Elas foram em busca da realização do sonho de se tornarem médicas.

Chegando lá, em diferentes períodos, foram convidadas a conhecer a célula comandada por uma pastora e, posteriormente, convidadas a morar na “casa”, local onde ocorriam os abusos.

Uma das mulheres que não quis ser identificada disse ao Eufêmea que a relação com a pastora começou muito boa. “Ela me presenteava com coisas, dizia que sempre ia estar do meu lado. Na época eu estava passando por alguns problemas e ela falava que ia me ajudar a resolver”.

Ela disse que já tinha ouvido algumas histórias sobre a casa e que ela chegou a ter medo de ir morar lá. “Mas como eu ia dizer não para a pastora da igreja?”, questionou.

Uma segunda moradora da casa, que também pediu para não ser identificada, por influência, também caiu nessa situação. “Quando chegou o dia de decidirem morar todos juntos, o argumento utilizado era o seguinte: aqui você vai crescer espiritualmente, estará seguindo o seu chamado, receberá aulas inéditas que ninguém mais tem, e assim por diante”.

“Vi todos levantando a mão e, por efeito manada, fui também”, explicou.

“Fiquei dois anos sem cursar a faculdade”

“Tudo isso ela fazia dizendo que era por nos amar, para nos corrigir, que era a nossa mãe”. O medo de serem punidas por Deus e de serem afastadas da comunidade fazia com que as orientações da pastora fossem seguidas à risca, sem questionamentos.

Ter conhecimento sobre esses temores e provocá-los é, inclusive, mais um dos comportamentos verificados como padrão entre os falsos líderes. “Na minha cabeça, eles por serem superiores a mim, estavam lidando da forma certa, e eu que estaria pensando errado”, disse uma das mulheres.

Ela também contou que para viver com essa pastora, elas precisaram: servir, cuidar, fazer comida, lavar roupa, limpar o quarto e estar sempre com ela.

“Ela pegava fósforo e colocava na gente queimando. Botava a gente pra lutar um com o outro, se machucando e ela se divertindo”, lembra uma delas.

Um dos episódios que mais marcou foi quando a pastora pediu para que ela tirasse a roupa porque queria ver o corpo dela.

“Ela começou a chamar várias meninas para entrar no quarto. Quando eu cheguei lá, estavam todas as meninas, algumas peladas completamente e outras seminuas. Eu comecei a chorar e disse que tinha muita vergonha, fiquei pedindo por favor. Ela falou para mim que se eu amasse ela de verdade eu faria aquilo. As meninas que estavam ao redor, a mando dela, começaram a vir tirar minha roupa”.

Segundo uma das entrevistadas, outro fato que também ocorreu é que ela ficou dois anos sem cursar a faculdade. “Disseram que ficar na casa não prejudicaria os estudos, mas não tivemos tempo para nada, então automaticamente fiquei dois anos sem cursar a faculdade”, afirma a segunda entrevistada.

Muda a religião, mas o padrão permanece

Uma alagoana que preferiu não se identificar contou ao Eufêmea em entrevista exclusiva que foi expulsa da comunidade católica na qual atuou ativamente nos últimos três anos e meio, realizando diversas missões espirituais pelo país.

“Mesmo estando em um âmbito espiritual, comecei a olhar de maneira mais racional e perceber que algumas coisas não batiam com o que era pregado no Evangelho. Eles pregavam uma coisa, mas nas atitudes do cotidiano e nas conversas com as pessoas, agiam de outra maneira”, afirma.

Ela disse que os fundadores da comunidade não gostaram dela ter questionado algumas coisas. “Por mensagem, sem nenhuma explicação, me disseram que eu estava convidada a sair e obrigaram todos de lá de dentro a se afastar também, fui completamente excluída”.

“Passei por um grande processo para me dar conta do que vivia”
Foto: Cortesia

Rosane Zigunovas é uma sobrevivente que transformou sua superação do abuso em uma missão. Psicóloga especializada em trauma, ela se dedica a educar e conscientizar outras pessoas por meio de seu Instagram @psicologiaeabusoreligioso.

“Eu frequentava um centro xamânico de ayahuasca, estabelecido no Brasil há mais de 20 anos, cujo líder do ritual gritava com as pessoas no meio da cerimônia, tudo em nome do espiritual, alegando que era a presença espiritual que estava ali”, afirma.

Ela disse que rompeu com o ciclo do abuso emocional e, com isso, ela perdeu contato com pelo menos 60 pessoas que frequentavam a casa dela.

“Uma das grandes questões é a solidão que as pessoas ficam depois disso porque geralmente há toda uma rede de relações ali e a exclusão é uma das dores mais profundas dentro do processo de trauma”, conta Rosane.

Rosane explica que o abuso psicológico pode acontecer de forma sutil e, além disso, pode ser a porta de entrada que mantém a vulnerabilidade da vítima, levando a outros tipos de violência.

“O respeito ao sagrado e à autoridade religiosa, junto com o medo da exclusão, são a combinação perfeita para líderes mal intencionados. Eu, que sou psicóloga e lido com traumas, passei por um grande processo até me dar conta de tudo isso, imagine as pessoas que não têm acesso à informação”, disse.

Rosane afirmou que a primeira coisa que ela fez foi cuidar de si e procurar um tratamento. “Depois, comecei a dialogar e a publicar material para outras pessoas poderem ter conhecimento de que isso existe”, conclui.

Meline Lopes

Meline Lopes

Jornalista, advogada, especialista em comunicação e em marketing digital. Atuou como repórter de televisão durante 9 anos em diversas emissoras do Brasil. É repórter do Eufêmea.