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Ela foi a primeira pessoa do país a conseguir o registro como intersexo: conheça a história da pernambucana Céu

No Brasil, um marco foi alcançado no reconhecimento das pessoas intersexo. Céu Albuquerque, jornalista, fotógrafa e engenheira civil, tornou-se a primeira pessoa a conseguir o reconhecimento na certidão de nascimento como intersexo. Após quase três anos de espera, a pernambucana comemora a conquista e alerta para políticas públicas e direitos do grupo no país.

NOTA DA REDAÇÃO: Intersexo descreve uma pessoa que naturalmente desenvolve características sexuais que não se encaixam nas noções típicas de sexo feminino ou sexo masculino.

“Eu me sinto muito maravilhada no sentido de que estamos finalmente avançando pelo reconhecimento das pessoas intersexo no Brasil. Eu vejo isso como um marco histórico. A minha certidão foi um marco histórico”, diz Céu em entrevista ao Eufêmea.

Foto: Cortesia ao Eufêmea

Para Céu, essa vitória vai além do aspecto pessoal. É um passo crucial na luta por políticas públicas inclusivas e pelo reconhecimento dos direitos das pessoas intersexo.

“Essa minha luta na justiça não foi exclusivamente para mim. Foi para que políticas públicas pudessem ser criadas e essas pessoas pudessem ter o máximo de proteção do Estado e garantia de seus direitos, incluindo saúde e autonomia sobre seus corpos de modo geral”, disse.

A pernambucana contou que foi criada como menina, mas que esse processo foi complicado para ela. “Eu não me via como uma criança igual às outras. Eu sempre tive a sensação de que era diferente. Isso sempre me gerou muita disforia de gênero”, diz Céu.

Mutilação genital

Apesar de ser referência na luta, a pernambucana descobriu que é intersexo há quatro anos. Ela relata que nos primeiros anos de vida foi submetida a uma cirurgia de “adequação” do seu sexo biológico, sendo tratada como uma anomalia ou doença.

“Eu passei por uma cirurgia de adequação, onde chamam de genitoplastia feminizante. Essa violência afetou, de modo geral, tudo na minha vida”, diz Céu ao explicar que as intervenções cirúrgicas foram realizadas quando tinha entre 1 e 3 anos de idade.

De acordo com a pernambucana, as consequências físicas das cirurgias foram acompanhadas por um impacto emocional profundo. Céu revela como cresceu enfrentando disforia de gênero, depressão e ansiedade.

“Eu fui uma criança com depressão, com ansiedade, uma coisa que não era para existir. Eu costumo dizer que as cirurgias, elas destroem a vida de todas as formas, além de ter prejudicado a minha vida física, também prejudicou a sexual. Eu sinto muita dor, eu tenho pouca sensibilidade, eu tenho fibrose e estenose, além de muito problema com infecção urinária”, desabafa Albuquerque.

Ela reforça que a cirurgia de “adequação” de sexo representa uma preocupação apenas com a estética e não com a saúde da pessoa intersexo. Além disso, Céu considera que o procedimento é “violento e prejudica a qualidade de vida da criança”.

“É tão violento o ato da cirurgia, que eles não pensam na qualidade de vida da criança, eles pensam apenas na questão estética, no que a sociedade vai falar caso essa criança cresça com a genitália ambígua. Não é porque a cirurgia vai ser boa para a criança, porque não é. A não ser que você mesmo, seja um adulto, um adolescente, possa consentir sobre isso”, explica.

Enquanto a luta continua para mudar o sistema binário, Céu e outros membros da comunidade intersexo permanecem firmes em sua busca por justiça e dignidade. “Temos torcido, nós da comunidade intersexo, que projetos que inclusive já estão em tramitação na Justiça saiam o mais rápido possível, eles são para banir a cirurgia, proibir a cirurgia em território nacional”, declara Céu.

Hiperplasia adrenal congênita

Foto: Cortesia ao Eufêmea

Céu destacou os desafios enfrentados pelas pessoas com variações intersexo, como a hiperplasia adrenal congênita, além de ressaltar a importância da representatividade nesse contexto.

Hiperplasia adrenal congênita é um grupo de doenças genéticas que limitam a produção de hormônios nas glândulas adrenais. A doença afeta o crescimento e o desenvolvimento normais de uma criança. Embora possa causar risco de vida, a maioria das pessoas com essa doença pode levar uma vida normal com o tratamento adequado.

“Negar a corporalidade das pessoas com hiperplasia, entre outras variações intersexo, é só mais uma violência que essas pessoas passam. O intuito dessa negação médica, principalmente para meninas com hiperplasia, é exatamente que, através da negação, a gente consegue instruir a família, fazer uma lavagem cerebral, muitas vezes até com ameaças, às famílias de que aquela criança é uma criança com corpo feminino e que precisa ser consertada, é o termo que eles usam”, pontua a pernambucana.

Como a única mulher no Brasil com hiperplasia que fala abertamente sobre sua experiência, Céu reconhece o papel crucial que desempenha como uma voz representativa. Ela destaca os desafios enfrentados pelas pessoas com variações intersexo, que muitas vezes são silenciadas devido às violências e traumas que enfrentaram ao longo da vida.

“São tantos abusos, estupros, violências e mutilações ao longo da vida, que é raro conhecer, até para mim mesmo, que já estou no ativismo há mais de 10 anos, é raro para mim conhecer uma pessoa que tem hiperplasia e fala sobre isso”.

Compreensão e aceitação

Além dos impactos físicos, quais os emocionais de crescer sendo intersexo em uma sociedade com binarismos? Céu confessa que “na questão psicológica e emocional, afetou de diversas formas”. Ela relata como os desafios de aceitação de sua identidade de gênero e de enfrentar o estigma social tiveram um impacto profundo em sua saúde mental.

“Eu tenho ajudado muita gente, muitas mães, a conscientização de não operarem e muitos têm desistido disso”, compartilha ela, destacando os resultados positivos de sua incansável advocacia.

Apesar das dificuldades, Céu encontra força em sua determinação em ajudar os outros e em sua capacidade de superar os desafios. “Eu tenho alcançado números gigantes assim de um modo geral nas redes sociais”, diz ela.

Além de seu impacto público, Céu também destaca o apoio que oferece individualmente às pessoas intersexo que estão em busca de compreensão e aceitação. “Muita gente chegou pra mim no privado, que estava se descobrindo intersexo agora”, conclui.

Rebecca Moura

Rebecca Moura

Estudante de Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.