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Minha experiência: uma história não contada sobre a Madonna, eu e meu tio intersexo

Leia o texto ouvindo a música Frozen da Madonna

Foto: Instagram/Reprodução

Se meu tio estivesse vivo, ele certamente teria ido ao show da Madonna no Rio de Janeiro. Esse foi o primeiro pensamento que tive quando soube que ela faria um show no Brasil. Por medo e insegurança, eu fiquei refletindo se deveria mesmo arriscar tudo para vivenciar esse espetáculo. No entanto, foi num momento de animação que meu amigo Berg Dantas e eu compramos passagens de ida e volta, saindo de Recife, para o Rio de Janeiro. (Lembrando que nós moramos em Maceió).

Passagens. Apenas isso. Sem hospedagem ou bagagem, apenas nossa ida e volta. Aqui, no Eufêmea, estávamos buscando uma mulher que fosse fã da Madonna e que iria para o show. De repente, eu era a personagem que estávamos buscando. Isso gerou até alguns contatos por parte da imprensa local para contar essa história da minha ida ao Rio de Janeiro. A Agência Tatu fez uma matéria sobre isso.

A verdade é que por trás de uma atitude ‘impulsiva’ minha e do Berg, havia uma história que só a minha família sabia. Eu cresci ouvindo Madonna. Meu tio Raí, uma pessoa intersexo, era fã dela. Tinha pôsteres no apartamento, todos os CDs e os clipes dela gravados em uma fita VHS.

Na infância, minha diversão era assistir aos clipes da Madonna com ele. “Frozen” era a música que eu mais gostava e que ele também mais gostava. Perdi as contas de quantas vezes assistimos juntos aos clipes dela.

Não só assistimos, mas conversamos diversas vezes sobre a Madonna e sobre a vida dela. A sensação era que estávamos falando de uma amiga.

Ele me prometia, ainda na infância, que se ela viesse fazer show no Brasil, ele me levaria. Eu cresci acreditando e esperando por esse momento.

Eu, enquanto mulher, achava incrível o quanto a Madonna desafiava a sociedade e mostrava para o mundo que ela podia fazer o que queria.

Não sei explicar o que as músicas da Madonna me causavam, mas posso dizer que cada canção evocava um sentimento diferente em mim. Por exemplo, a música “Live To Tell” sempre me dava vontade de chorar, enquanto “Like a Prayer” me fazia querer dançar e cantar bem alto. Sensações diferentes.

E eu sentia que precisava viver isso pessoalmente. Então, deixei o medo de lado e decidi vivenciar esse show. Hoje, percebo que esse show que ainda vou ver não é só por mim. É também em memória do meu tio, que faleceu em 2022 após um câncer metastático. Não deu tempo dele ir, mas eu estou aqui e posso ir.

Não é apenas um show ou um impulso, é a vontade de experimentar algo que meu tio, que me apresentou à Madonna, não teve a chance de vivenciar. Eu sei que muitas pessoas podem não entender o que isso significa para mim, mas é uma forma de honrar e realizar um sonho que ele não conseguiu concretizar. É uma maneira de me dizer: “Eu vivi esse show histórico, eu estava lá”.

Sou do tipo de pessoa que pensa: eu não sei se terei o amanhã. Por enquanto, só tenho o hoje. Então, farei tudo o que puder para viver o hoje.

Meu tio se foi e deixou comigo alguns CDs da Madonna e um livro com a biografia dela. Mas ele deixou mais do que isso; deixou todas as memórias que vivenciei com ele e, de alguma forma, com a Madonna.

Foto: Arquivo Pessoal

Raíssa França

Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.