A psicanalista Brune Bonassi, de 31 anos, se tornou a primeira pessoa a conseguir, na Justiça do Ceará, o direito de ser identificada como “não-binária” (NB) em sua certidão de nascimento. Isso significa que o campo destinado ao sexo no registro não conterá “feminino” ou “masculino”, pois a identidade de gênero não-binária não se encaixa exclusivamente em um dos dois gêneros.
Uma pessoa não binária é aquela cuja identidade de gênero não se alinha completamente com os padrões tradicionais de masculino e feminino. Essas pessoas podem se identificar com um gênero fluido, neutro ou fora do espectro binário de gênero.
No Brasil, 2% da população adulta é composta por pessoas transgênero ou não binárias. Em números absolutos, isso significa cerca de 3 milhões de indivíduos. Os dados são da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp).
Os pronomes de tratamento também são importantes para a identificação dessas pessoas. Cada pessoa não-binária tem sua preferência, podendo optar por feminino (ela/dela), masculino (ele/dele) ou neutro (elu/delu). Para respeitar a identidade de gênero de uma pessoa não-binária, é essencial perguntar como ela prefere ser tratada e utilizar os pronomes com os quais se sente mais confortável.
Reconhecimento

Ao Eufêmea, Brune Bonassi, que utiliza todos os pronomes, relata que se reconheceu como pessoa não-binária em 2015.
“Foi a partir do entendimento de que os sexos e os gêneros são construções sociais que carregam uma longa história de opressão. Foi estudando pessoas intersexo e pessoas trans que cheguei a essa conclusão, e simplesmente não podia mais me ver naquele espectro binário”, relata.
Desde a infância, Brune enfrentou desafios relacionados à sua identidade de gênero, já que não se identifica com o binarismo. “Era uma criança solitária, muito também às custas do autismo, que não gostava nem dos grupos de meninas nem dos de meninos. Com o tempo, fiz amizade em grupos mistos, mas o peso do binarismo andou comigo por toda a vida, contribuindo inclusive para quadros depressivos”, relembra.
No entanto, na época, ainda não havia a possibilidade de retificação para pessoas não-binárias, e o processo judicial era custoso para todos que desejavam fazer a mudança. “Eu não era uma pessoa com muitos recursos financeiros”, disse ela.
“Em 2018, com o provimento 73 do CNJ, encontrei um cartório aliado disposto a fazer minha retificação, contanto que eu assinasse um termo dizendo que não mudaria novamente meu nome ou gênero. Na época, mudei apenas meu prenome e não retifiquei o sexo”, conta.
Processo de retificação
Foi em 2022, com o apoio da Articulação Brasileira Não Binárie (ABRANB) e da Defensoria Pública do Ceará, que Brune iniciou o processo para a retificação completa. “Foi um processo muito longo (dois anos e meio), com várias violações de direitos no decorrer”, relata.
Bonassi conta ainda que durante o processo, ocorreram atrasos burocráticos e exigências consideradas inadequadas, como a requisição de laudo psicológico e anuência do cônjuge.
“Embora a Defensoria Pública fosse aliada e a primeira defensora responsável fosse uma pessoa disposta e informada, o segundo defensor que pegou nossos processos os atrasou demais por problemas burocráticos, como entregar os documentos borrados e levar dois meses para corrigir”, disse.
A psicanalista conta que esse processo foi como ficar no escuro. “Ficamos sem conseguir acessar nossos processos ou conversar com os responsáveis, foi bastante ansiogênico”, continua.
Brune destaca também a importância do apoio coletivo durante essa jornada. “Ter a identidade constantemente questionada é um problema gigantesco, é uma insegurança ontológica que gera agravantes na saúde. Tivemos que ter, enquanto grupo, muito apoio entre nós”, afirma.
Reconhecimento legal
O reconhecimento legal como pessoa não binária é apenas o primeiro passo para Brune e para a comunidade. “Incluir de forma efetiva pessoas não binárias em todos os sistemas referentes a políticas públicas é um processo que demora muito mais tempo”, ressalta.
No entanto, ela acredita que o país está avançando no reconhecimento de pessoas que não se identificam com o sexo atribuído ao nascimento.
“É uma vitória para a comunidade, visto que não ser reconhecide legalmente afeta diretamente a saúde e bem-estar da comunidade, bem como o acesso a serviços específicos na saúde e outras políticas públicas”, expõe Brune.
A decisão judicial que reconheceu Brune como pessoa não-binária já está sendo utilizada para deferir outros processos no estado, e diversas pessoas têm buscado orientação sobre como proceder para obter o mesmo reconhecimento. “Certamente é um avanço, embora seja ínfimo para a quantidade de demandas que a nossa população tem ao Estado”, diz.