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Embora o acesso à saúde para pessoas transexuais e travestis tenha avançado com a ampliação de 271 procedimentos médicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), anunciada em maio de 2024, os desafios ainda persistem.
Essas mulheres continuam enfrentando dificuldades para acessar serviços básicos e, muitas vezes, precisam lidar com comportamentos hostis, tanto de outros usuários quanto de profissionais de saúde, que frequentemente não estão preparados para atendê-las de forma adequada.
A estudante de relações públicas Nakisha relatou ao Eufêmea, como, em diversas ocasiões, foi tratada pelo pronome errado ou pelo seu nome morto. Ao questionar a equipe, recebeu apenas um pedido de desculpas em tom de deboche. Apesar de o uso do nome social no acesso à saúde pública ser garantido desde 2009, por meio da Portaria nº 1.820 do Ministério da Saúde, essas situações ainda são recorrentes.

Nakisha também destaca problemas estruturais no atendimento. “Dificuldade para marcar consultas devido à falta de vagas, longos tempos de espera em filas e a ausência de hormônios gratuitos nos locais de atendimento são situações comuns”, afirma.
Treinamento para a equipe
Para Nakisha, uma das formas de melhorar o atendimento a mulheres transexuais e travestis no sistema público de saúde é investir no treinamento das equipes de atendimento.
“É fundamental capacitar os profissionais para evitar erros recorrentes, como o uso incorreto de pronomes e abordagens invasivas”, afirma.
A estudante também ressalta a necessidade de ampliar a oferta de vagas para consultas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), especialmente para especialidades como fonoaudiologia, que desempenham um papel importante no acompanhamento de pessoas trans.
Além disso, ela reforça a importância de aumentar o número de hospitais que realizam cirurgias de afirmação de gênero, garantindo maior acesso a esse serviço essencial.
Assediada a caminho do hospital
Por muito tempo, a transfobia presente nos serviços de saúde afastou a multiartista Samantha da busca por atendimentos básicos. Comentários e olhares negativos foram suficientes para fazê-la evitar o acesso a algo essencial e garantido a qualquer ser humano.
“Uma das maiores dificuldades que enfrentei foi ter confiança suficiente para buscar atendimento. Eu não tinha autoestima nem autoconfiança para enfrentar a transfobia nesses espaços, onde era evidente que ela estaria presente”, desabafa Samantha.
Em uma dessas buscas por atendimento, ela recorda um episódio traumático em que foi perseguida e assediada por um homem enquanto caminhava em direção ao Hospital Universitário da Ufal, onde costuma realizar seus atendimentos.
“Eu precisava acordar muito cedo e ir a pé para as consultas. Quando estava chegando ao hospital, um homem passou por mim, começou a me assediar e a me seguir. Eram 5h30 da manhã. Senti-me extremamente vulnerável, sem conseguir falar ou reagir. Estava em choque”, relembra. “Isso reflete como, até mesmo no caminho para acessar a saúde, nós estamos desprotegidas”, desabafa.
Dificuldade na entrega de hormônios

Entre os principais desafios enfrentados, Samantha destaca as dificuldades relacionadas à entrega de hormônios necessários para a terapia hormonal. Ela explica que os obstáculos começam já na tentativa de agendar uma consulta com um endocrinologista.
“Muitas mulheres trans não têm condições financeiras para comprar os hormônios. Eu, por exemplo, só consegui iniciar minha terapia hormonal porque uma das enfermeiras do ambulatório custeou grande parte dela. Sem essa ajuda, não sei se teria conseguido”, relata.
Samantha também ressalta a importância de facilitar o acesso a esses medicamentos e implementar atendimentos preferenciais para pessoas trans em algumas áreas. “Isso evitaria que muitas mulheres precisassem se expor a situações perigosas, como sair de madrugada para conseguir uma ficha para marcar exames”, afirma.
Sincretismo religioso e desrespeito
“A qualificação dos profissionais de saúde para o atendimento a pessoas trans e travestis é extremamente limitada. Deveria haver uma política pública voltada para capacitar esses profissionais, priorizando a humanidade e o respeito”, diz a jornalista Diana Justino, que destaca a falta de preparo e sensibilidade em serviços essenciais.
Diana relata que, ainda no início de sua transição, a retificação de seu nome e gênero nos documentos foi crucial para garantir o respeito à sua identidade nos espaços que frequenta. No entanto, mesmo após a mudança, ela continua enfrentando situações em que seu pronome de tratamento não é respeitado.
Para Diana, o desrespeito com pessoas transexuais, seja na saúde ou em outros âmbitos sociais, é frequentemente justificado pelo sincretismo religioso e pelo conservadorismo. “O cristianismo é muito presente em nosso país e nós somos vistas como abominações. Sofremos com estigmas que nos acompanham desde a Grécia Antiga”, explica.
Desrespeito em serviços públicos

Além dos desafios no setor de saúde, Diana também denuncia dificuldades em outros serviços públicos. Ela relembra um episódio doloroso em que, após sofrer violência doméstica por parte de seu ex-parceiro, tentou registrar um Boletim de Ocorrência, mas foi desrespeitada pelo delegado de plantão.
“Ele pediu que eu me afastasse porque a ferida em minha boca cheirava mal. Mesmo nesse momento, encontrei forças para expressar o quanto ele era insensível e solicitei atendimento de outra pessoa. Fui então atendida por uma mulher cis, que registrou a ocorrência, mas não me concedeu a medida protetiva que eu havia pedido”, conta.
Diante dessas experiências, Diana revela um olhar desolado sobre o tratamento de pessoas trans em serviços públicos no Brasil.
“Em 2024, segundo relatório da Antra, o Brasil é, pela 15ª vez, o país que mais mata pessoas trans no mundo. Essa é uma realidade que, na minha percepção e das minhas irmãs, não vai mudar. Posso falar isso com propriedade, porque eu sei, eu vi de perto. É lamentável”, finaliza.