Por Anne Caroline Fidelis
Historicamente, a violência contra as mulheres foi tolerada sob justificativas que buscavam minimizar ou até mesmo excluir a responsabilidade dos agressores. Um dos exemplos mais emblemáticos foi a tese da legítima defesa da honra, utilizada durante décadas nos tribunais para justificar feminicídios. Essa argumentação se baseava na ideia de que um homem, ao se sentir traído ou rejeitado, teria o direito de matar para restaurar sua honra, ignorando completamente a autonomia e a dignidade das mulheres.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão histórica de 2021 (ADPF 779), declarou a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, reconhecendo que essa argumentação perpetuava o feminicídio e violava princípios fundamentais da Constituição, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade de gênero.
No entanto, embora essa tese tenha sido formalmente afastada, um novo artifício tem sido utilizado para minimizar ou excluir a responsabilidade dos agressores: a chamada “tese da loucura”.
Atualmente, observa-se um padrão preocupante nos tribunais: a alegação de suposta insanidade mental como estratégia para afastar a culpabilidade de autores de violência contra mulheres. Se antes a defesa recorria à honra como escudo, hoje a insanidade tem sido utilizada para evitar condenações severas ou suavizar punições.
Embora o Código Penal preveja a inimputabilidade para pessoas que, no momento do crime, não possuíam discernimento sobre seus atos (art. 26), é fundamental que essa alegação não se transforme em um instrumento de impunidade.
A feminista Kate Millett, em Política Sexual, já denunciava como a psiquiatria e as noções de loucura foram historicamente utilizadas contra as mulheres — seja para descredibilizar suas denúncias, seja para justificar abusos cometidos contra elas.
De maneira similar, o uso oportunista da insanidade para absolver homens violentos reforça um sistema que ainda reluta em responsabilizar efetivamente os autores de violência de gênero. Como bem afirmou Simone de Beauvoir, “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Nesse contexto, a cumplicidade se manifesta no uso indevido de argumentos jurídicos, que não apenas minimizam a gravidade dos crimes cometidos contra mulheres, mas também perpetuam a impunidade e a normalização da violência de gênero.
Além disso, é fundamental lembrar que a loucura não pode ser seletiva. O sistema penal não demonstra a mesma indulgência quando o autor do crime é uma mulher ou uma pessoa socialmente vulnerável. Como bem aponta Angela Davis, em Mulheres, Raça e Classe, a sociedade é mais severa na criminalização de mulheres negras e pobres, ao mesmo tempo em que oferece justificativas para a violência cometida por homens privilegiados.
O mesmo raciocínio se aplica à tese da loucura: enquanto serve como desculpa e atenuante para alguns, para outros significa punição brutal e desproporcional.
Diante disso, operadoras e operadores do direito precisam estar atentos para que a inimputabilidade penal seja aplicada com rigor técnico, evitando que ela seja transformada em um mecanismo de injustiça. Se um indivíduo realmente apresenta transtornos mentais, a solução deve passar por medidas de segurança adequadas e não pela impunidade absoluta. A responsabilização penal não pode ser relativizada sob um argumento frágil e oportunista.
A luta contra a violência de gênero exige que o sistema de justiça avance no reconhecimento da gravidade desses crimes e na garantia de que agressores sejam responsabilizados. Não podemos permitir que a loucura se torne o novo álibi da violência. Afinal, a impunidade não só perpetua o ciclo da violência, mas também envia um recado perigoso para toda a sociedade: de que a vida das mulheres continua sendo descartável.
Referências
• BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
• BRASIL. Supremo Tribunal Federal – ADPF 779. Relator: Min. Dias Toffoli, julgamento em 12 de março de 2021.
• BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
• DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
• MILLETT, Kate. Política Sexual. São Paulo: Editora Paz & Terra, 2000.