Quando eu tinha uns 14 anos, a TV da minha casa quebrou. E, naquela época, assistir TV era a nossa maior diversão. Sem ela, sobraram apenas duas opções: um som preto que ainda rodava CDs e um caderno de 10 matérias, onde eu escrevia sem parar.
Escrever se tornou minha única saída naquela fase de escassez financeira que vivíamos. O que eu escrevia? Tudo. Criava histórias, registrava segredos no diário, começava livros que nunca foram lidos ou publicados. Mas, de alguma forma, aquelas páginas preenchidas eram meu refúgio, meu mundo particular em meio às dificuldades.
Essa lembrança veio à tona em meio às lágrimas que caíram dos meus olhos na última semana. Agora, com 32 anos, já inserida na vida adulta, me vi diante de um aperto financeiro e da dura realidade de que as contas não podem esperar.
Hoje, eu sei que a maioria dos adultos enfrenta momentos assim, mas, naquele instante, minha criança interior gritou dentro de mim. Era como se ela temesse que passaríamos, mais uma vez, por tudo aquilo que já enfrentamos no passado.
Hoje, aos 32 anos, depois de anos de terapia – desde os 26 –, tenho plena consciência de que vivi experiências que nenhuma criança deveria enfrentar: a falta.
E não era apenas a falta de dinheiro. Faltava comida, energia, brinquedos, roupas, passeios. A sensação era de que aquela escassez nunca teria fim, que estávamos presos a uma realidade onde sempre faltava algo essencial. Eu não aceitava ter que passar por tudo aquilo. Mas a vida, nem sempre é justa.
Minha vida hoje é outra. O estudo me salvou. A comunicação me salvou. Ou melhor: antes do estudo e da comunicação, quem me salvou de verdade foi escrever.
Escrever me libertou. Foi a maneira que encontrei para colocar para fora tudo o que sentia – o bom e o ruim. Foi através das palavras que ganhei asas para sonhar. E, por um instante, uma menina pobre como eu pôde acreditar que havia algo maior esperando por ela.
Como eu estava dizendo: minha vida hoje é outra. Mas basta um aperto financeiro, uma ameaça à minha rotina, para que o medo me envolva e o pensamento ressurja: “tudo vai ser como antes…”
E não é só medo. É trauma.
Um trauma que me paralisa, que me faz perder o chão, que desperta em mim uma urgência desesperada de resolver tudo de imediato. Um trauma que, hoje, eu sei que não deveria mais estar aqui.
Esse medo da escassez me fez trabalhar mais do que o dobro, estudar mais do que o triplo e aceitar estágios e empregos não pelo aprendizado, mas pela necessidade do dinheiro.
Esse medo de não crescer na vida, de não ter condições de honrar meus compromissos, me fez ser incansável, exigente comigo mesma, sempre em busca do próximo passo, como se parar significasse voltar para a escassez.
Eu tento acolher minha criança interior e dizer a ela, com carinho, que tudo vai ficar bem. Que não estamos mais naquele lugar. Que construímos um caminho diferente. Mas, às vezes, ela ainda sente medo. E eu também.
Esse texto poderia ser apenas uma conversa com a minha terapeuta, mas decidi torná-lo público porque sei que existem muitas pessoas que sentem o mesmo.
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