Na série Adolescência, recém-lançada pela Netflix, um garoto de 13 anos é acusado de assassinar uma colega de escola. O crime choca a sociedade e levanta uma série de perguntas sobre o comportamento do adolescente. Conforme a trama avança, aspectos sombrios da internet e comunidades virtuais começam a surgir — entre eles, o envolvimento com fóruns incel, onde o ódio contra as mulheres é incentivado e naturalizado.
O que é a cultura “incel”?
O termo “incel” vem do inglês involuntary celibate (celibatário involuntário) e define um grupo de homens que atribuem suas frustrações sexuais e afetivas às mulheres. A partir disso, constroem discursos violentos e profundamente misóginos, principalmente no ambiente digital.
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Segundo a pesquisadora de gênero Andréa Pacheco, essa cultura não é exatamente nova. “A internet se torna um campo de disputa para manter os privilégios masculinos. O que vemos nos fóruns incel é a reatualização do patriarcado. Não é algo inédito, mas sim uma versão atualizada do machismo que sempre existiu”, diz.
Esses grupos se organizam por meio de lives, fóruns, conferências e redes sociais, propagando uma política de ódio contra as mulheres. A ideia do “poder do macho” — termo cunhado pela socióloga Heleieth Saffioti — é central nessas comunidades.
O problema, no entanto, não se restringe ao universo digital. “Existe um discurso de morte às mulheres — e não é simbólico. É um projeto real de violência. A misoginia que começa na internet se materializa nas ruas, nas escolas, nas praças e nos ambientes de trabalho”, alerta Andréa.
Como os incels atraem jovens?

A principal tática usada para atrair adolescentes é a aproximação empática. Jovens que enfrentam bullying, frustrações amorosas ou dificuldades sociais são os mais visados.
“Eles se aproximam dizendo que viveram as mesmas dores e sugerem que a culpa é das mulheres. A partir disso, convidam o jovem a participar de grupos e ajudam a disseminar essa narrativa para outros homens”, explica Andréa.
É nesse contexto que os fóruns ganham força. Lá, os discursos se tornam mais radicais, pois há liberdade para expressar ideias extremistas sem filtros. Para Evelyn Gomes, especialista em cultura digital, o discurso inicial é sempre sutil.
“A entrada nunca é agressiva. Eles usam a solidão ou insegurança do jovem como isca. Depois, essa conversa evolui para discursos de ódio. Aos poucos, esses jovens vão sendo doutrinados na misoginia”, explica.
O papel das redes sociais
Grande parte do problema está nas próprias plataformas. O algoritmo contribui para a disseminação de conteúdos misóginos, entregando esse tipo de publicação para quem já demonstrou interesse em ideias semelhantes. O resultado é um ciclo vicioso que reforça o ódio e a desinformação.
Para Evelyn, a regulamentação das redes sociais é uma das chaves para interromper esse ciclo. No entanto, grandes empresários como Elon Musk (X) e Mark Zuckerberg (Meta) têm se posicionado contra a regulação, sob o argumento de “liberdade de expressão”.
“Eles estão desmontando os poucos avanços que havíamos conseguido. O algoritmo não remove mais conteúdos que incentivam misoginia, racismo e até pedofilia. Essa defesa da ‘livre expressão’ está sendo usada para justificar violência”, alerta a especialista.
Ela afirma que denúncias em grupo ainda são importantes, mas que é impossível combater o problema apenas com ações individuais. É preciso unir educação midiática, políticas públicas e regulação digital.
Como a cultura incel afeta os adolescentes?

O envolvimento com essa subcultura afeta diretamente o desenvolvimento emocional dos jovens. Um dos impactos mais graves é a deterioração da autoimagem, marcada pela ideia de que alguns estão “destinados” ao fracasso nas relações.
Segundo Kamilla Oliveira, psicóloga especialista em adolescência, esse jovem pode desenvolver isolamento social, desesperança e dificuldade em lidar com frustrações. “A mentalidade de ‘nós contra elas’ impede o amadurecimento emocional e dificulta relações saudáveis. Em casos mais graves, pode levar a comportamentos hostis e até violentos contra mulheres”, diz.
Como prevenir?
A prevenção começa dentro de casa. Criar um ambiente de diálogo seguro é essencial para que adolescentes possam falar sobre suas inseguranças, medos e frustrações.
Kamilla destaca que o desenvolvimento do pensamento crítico é uma ferramenta poderosa. “Pais e responsáveis devem ajudar os jovens a questionarem ideias extremistas. Apresentar diferentes perspectivas pode evitar que discursos de ódio ganhem força”, afirma.
Outras medidas incluem acompanhar o conteúdo que os adolescentes consomem, observar sinais de raiva intensa ou isolamento extremo e incentivar atividades que promovam habilidades sociais. “E se houver sinais de envolvimento com grupos extremistas, a ajuda psicológica deve ser buscada o quanto antes”, reforça a psicóloga.