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Invisíveis e sobrecarregadas: como o machismo afeta mulheres neurodivergentes

O machismo não afeta todas as mulheres da mesma forma. Para aquelas que são neurodivergentes, os impactos podem ser ainda mais profundos — e, muitas vezes, invisíveis. A pressão para se encaixar em padrões, somada à dificuldade de acesso a um diagnóstico correto, cria um ciclo de silenciamento e sofrimento.

Nesse contexto, o machismo se manifesta de formas distintas: abala a autoestima, compromete a autoconfiança, interfere nos relacionamentos e contribui para diagnósticos tardios ou equivocados.

A psicóloga clínica Iara Dhenniffy explica que, enquanto meninos costumam expressar comportamentos externalizados — como hiperatividade e impulsividade —, as meninas são ensinadas desde cedo a esconder o que sentem. Sintomas e comportamentos tidos como “inadequados” são, muitas vezes, abafados.

“Essa internalização se manifesta em quadros de ansiedade, depressão e retraimento social. Aliada à nossa capacidade de ‘mascarar’ para atender às expectativas sociais, ela dificulta o reconhecimento da neurodivergência”, afirma a especialista.

Os estereótipos de gênero também colaboram para esse apagamento. Mulheres são frequentemente vistas como naturalmente empáticas, sensíveis e discretas. Mas essas mesmas características, quando interpretadas de forma equivocada, podem camuflar sinais como hipersensibilidade e timidez — que, em muitos casos, são os primeiros indícios de uma neurodivergência.

“Isso dificulta o reconhecimento por parte das próprias mulheres, de profissionais de saúde e das pessoas ao redor, perpetuando o ciclo de invisibilidade. Os estereótipos de gênero atrasam e distorcem diagnósticos em mulheres neurodivergentes”, reforça Iara.

Neurodivergência e isolamento no mercado de trabalho

Sem diagnóstico na infância, muitas mulheres convivem por décadas com sintomas de transtornos neurodivergentes sem compreender o que enfrentam — e, por isso, sem acesso ao tratamento adequado. Foi o que aconteceu com a especialista em Direito Digital Marielli Melo. O diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) só veio em 2024, aos 43 anos, enquanto ela buscava respostas para as dificuldades comportamentais do filho.

Durante a infância e adolescência, Marielli já sentia que não se encaixava. A sensação de inadequação se intensificou na vida adulta, especialmente ao atuar em um ambiente majoritariamente masculino. Situações comuns para muitas mulheres — como ter ideias ignoradas ou não ser ouvida em reuniões — eram frequentes. Mas, no caso dela, ser mãe solo e neurodivergente tornava o cenário ainda mais desafiador.

“A lentidão na execução das tarefas, característica do TDAH, me obrigou a estudar muito mais que outras pessoas e me esforçar constantemente para superar expectativas altíssimas”, relata.

Subestimada ao longo da carreira

A falta de informação sobre o TDAH — muitas vezes reduzido a “falta de foco” ou “desorganização” — fez com que a capacidade de Marielli Melo fosse subestimada diversas vezes ao longo da carreira. Para provar sua competência, ela relata que precisou trabalhar o dobro dos colegas homens.

“Essa pressão aumentou significativamente minhas inseguranças, tornando difícil criar relações genuínas, pois me sentia inadequada por não atender expectativas irreais”, conta.

A hipersensibilidade emocional, comum entre mulheres neurodivergentes, também foi usada contra ela. Marielli era constantemente rotulada como frágil ou emocionalmente instável. “Minhas dificuldades foram frequentemente minimizadas ou tratadas como fraquezas, enquanto comportamentos semelhantes em homens eram considerados aceitáveis ou valorizados”, lembra.

Apesar da constante pressão por metas inalcançáveis no ambiente corporativo, ela precisou aprender a estabelecer limites e rejeitar os julgamentos que tentavam reduzi-la.

“Hoje, conhecendo melhor meu funcionamento, não aceito mais ser desvalorizada ou rotulada negativamente. Transformei minhas características neurodivergentes em ferramentas de inovação e criatividade”, afirma.

Capacitismo disfarçado de cuidado

Crédito da foto: Arquivo Pessoal

O machismo estrutural se espalha por diferentes ambientes — inclusive por meio de atitudes reproduzidas por outras mulheres. Foi o que viveu Shirlene Fragoso, de 42 anos, diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e TDAH depois de identificar, no filho, comportamentos que também reconhecia em si.

Apesar de ser uma mulher adulta, autônoma e funcional, Shirlene relata que é frequentemente infantilizada ao revelar sua neurodivergência. Em uma das situações, durante um exame médico, ouviu a enfermeira comentar em tom de risada com a médica: “Ela é autista, a bichinha”.

“Notei um certo capacitismo e infantilização ali. Por ter dificuldade em esperar, lidar com barulhos ou luzes fortes, muitas vezes as pessoas confundem isso com incapacidade”, relata.

O peso invisível da maternidade neurodivergente

A sobrecarga, comum na vida de muitas mulheres, se intensifica ainda mais para mães neurodivergentes. Com dois filhos diagnosticados com TEA, Shirlene é responsável por levá-los a terapias, consultas, escola — e por todas as outras demandas do cotidiano.

“Eu vivo para eles e por eles. Não tenho ninguém que faça isso por mim. Nunca sobra tempo para me cuidar. Minha vida é ser mãe”, desabafa.

Em dias de crise, a situação se agrava. Geralmente, o filho mais novo entra em crise primeiro, seguido pelo mais velho. Quando isso acontece, Shirlene também se desregula. “Há momentos em que os três entram em crise ao mesmo tempo”, conta.

Segundo a psicóloga Iara Dhenniffy, as tarefas do dia a dia tornam-se ainda mais desgastantes para mulheres neurodivergentes, que acabam mais expostas a impactos graves na saúde mental.

“A pressão para conciliar papéis tradicionais, como o de cuidadora, somada à invisibilidade e ao estigma, intensifica a sobrecarga. Isso se manifesta em dificuldades de organização, problemas de sono, isolamento social e maior risco de burnout”, explica.

Embora não existam dados precisos sobre a porcentagem de mulheres neurodivergentes com burnout, profissionais da área reconhecem que o risco é significativamente maior entre elas.

É possível mudar: mais acolhimento, menos rótulos

Para transformar essa realidade, Iara defende a desconstrução de estereótipos de gênero e das crenças limitantes que envolvem a neurodivergência feminina. “É preciso entender que há diferentes formas de manifestação do autismo e do TDAH, especialmente entre as mulheres”, afirma.

Ela sugere que esse conhecimento seja disseminado por meio de palestras, oficinas e materiais informativos que cheguem a profissionais da saúde, educadores, familiares e à sociedade em geral — sempre em espaços seguros de escuta e troca.

Nos ambientes públicos e privados, como escolas e locais de trabalho, adaptações também são necessárias: iluminação adequada, redução de ruídos e espaços de descanso podem ajudar a minimizar a sobrecarga sensorial vivida por mulheres neurodivergentes, que muitas vezes são silenciadas e invisibilizadas.