Acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, é um direito básico garantido por lei. Mas, na prática, esse direito está longe de ser realidade para milhares de famílias em Alagoas — especialmente para as mulheres negras que chefiam suas casas e enfrentam sozinhas os efeitos da desigualdade social, política e econômica.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2023, Alagoas ocupa a 12ª posição entre os estados com maior número de domicílios em situação de insegurança alimentar. Mais de 423 mil lares alagoanos convivem com a incerteza de ter comida na mesa.
A insegurança alimentar pode ser classificada em três níveis: leve, quando há uma preocupação constante com o acesso futuro a alimentos; moderada, quando há redução na quantidade de comida disponível; e grave, quando a escassez é extrema, podendo evoluir para a fome.
Segundo a nutricionista Jamille Ferro, coordenadora do curso de Nutrição da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), mulheres negras e chefes de família são as mais impactadas pela insegurança alimentar. Para ela, a desigualdade social é o principal fator que dificulta o acesso regular a alimentos de qualidade.
Foto: Arquivo UFAL
“A população deveria ter acesso à moradia digna, transporte, educação, lazer e saúde. Se essas condições básicas não são garantidas, será que realmente existe liberdade para escolher o que comer?”, questiona.
Política pública que afeta o prato
As escolhas políticas do país influenciam diretamente o que chega — ou deixa de chegar — à mesa das alagoanas. O aumento no custo de itens da cesta básica, como ovo, café e arroz, somado à isenção de impostos sobre alimentos ultraprocessados, limita a capacidade de escolha por produtos saudáveis.
Um levantamento do site O Joio e o Trigo, com base em dados do Ministério da Fazenda, mostra que, entre 2015 e junho de 2024, os fabricantes de ultraprocessados acumularam cerca de R$ 15 bilhões em isenções fiscais. Coca-Cola e Ambev estão entre as empresas que mais se beneficiaram.
“Uma mulher me contou que, se não tomasse café pela manhã, sentia dores de cabeça. Para economizar, passou a usar aqueles sachês individuais e diluía a bebida para que durasse mais ao longo do dia”, relata Jamille.
Além de impactar a rotina, a falta de acesso a alimentos saudáveis influencia diretamente na saúde a longo prazo. O consumo frequente de ultraprocessados está associado ao aumento de doenças crônicas, como obesidade, diabetes e hipertensão — o que transforma a questão alimentar em um problema de saúde pública.
“Se tivéssemos uma política de maior taxação sobre ultraprocessados, haveria economia com gastos em saúde, principalmente em casos evitáveis. Isso se resolve com promoção de saúde e educação alimentar”, defende a nutricionista.
Conscientizar também alimenta
Foto: Arquivo Pessoal
Para a nutricionista Theresa Siqueira, a conscientização é uma etapa essencial na luta pela segurança alimentar e nutricional. Segundo ela, divulgar informações de forma acessível, em diversos canais de comunicação, é fundamental para que a população compreenda o que, de fato, é uma alimentação adequada.
Ela reforça que o direito à alimentação vai além da quantidade disponível: envolve a qualidade do que se consome. Informar sobre esse tema permite que as pessoas entendam a relação direta entre alimentação e saúde, além dos riscos de uma nutrição inadequada, como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.
“Hoje esse direito é negado de muitas formas. Desde a impossibilidade de acesso ao alimento até a comercialização de produtos que não possuem propriedades nutricionais adequadas. Precisamos divulgar os riscos que corremos quando esse direito é violado”, alerta Theresa.
Diversas iniciativas que buscam reverter esse cenário fazem parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), mas, segundo a nutricionista, ainda existe uma lacuna na divulgação dessas ações para a população.
Um dos exemplos mais relevantes é o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014. Com linguagem simples e acessível, o material apresenta orientações práticas para manter uma alimentação saudável e equilibrada.
Soluções coletivas para um direito que é de todas
Para as especialistas, a solução para a insegurança alimentar não pode ser individual. É preciso pensar em ações estruturais, articuladas entre o poder público e a sociedade civil.
“A gente precisa reforçar: ninguém está pedindo por algo que não é nosso. Estamos lutando para conquistar um direito básico, que é o direito à alimentação”, afirma Jamille Ferro.
Entre os caminhos possíveis, a nutricionista destaca a reforma agrária, o fortalecimento da agricultura familiar e uma política tributária mais rigorosa para alimentos ultraprocessados, que prejudicam a saúde da população.
Theresa Siqueira também reforça a importância da valorização dos pequenos produtores, ressaltando que a agricultura familiar não apenas oferece alimentos mais saudáveis, como também movimenta a economia local e fortalece a cultura alimentar do estado.
“Saber e valorizar de onde vêm os alimentos é essencial. Resgatar receitas típicas e criar novas possibilidades com ingredientes locais é um passo importante. Conhecer o que é uma alimentação saudável e adequada é responsabilidade de todos nós”, conclui.