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O agressor de mulheres é, antes de tudo, um covarde

Anne Caroline Fidelis e Bruna Sales

A escritora Fabiane Albuquerque, recentemente, fez uma observação que nos deixou reflexivas: durante o julgamento do caso da senhora francesa Gisèle Pelicot, que foi abusada enquanto dormia por vários homens com a conivência do seu então marido, uma declaração feita por um dos estupradores trouxe à tona uma verdade desconcertante sobre a forma como a masculinidade se articula com a violência.

Ele afirmou ser bissexual, que já havia se relacionado com homens e mulheres, e tinha histórico de agressões a mulheres. Ao ser questionado se já havia violentado algum homem, respondeu com frieza: “Não, apenas mulheres.”

Essa resposta, embora revoltante, revela algo profundo: a violência contra mulheres não é fruto do acaso nem da impulsividade — é uma escolha consciente, orientada por uma cultura que constrói o corpo feminino como território vulnerável e permissível. Trata-se de uma covardia enraizada em estruturas de poder. O agressor não ataca quem pode revidar. Ele escolhe suas vítimas a partir de uma leitura precisa das desigualdades que a sociedade alimenta.

No Brasil, um caso recente reforça essa lógica perversa. Um delegado assassinou a própria esposa, a empregada doméstica e uma enfermeira. Entre os crimes, ele dirigiu até um shopping center, cruzando com dezenas de homens. Nenhum deles foi atacado. Todas as suas vítimas foram mulheres. Quando se tenta justificar ações como essa com expressões como “surto” ou “transtorno”, é preciso lembrar que há, sim, racionalidade na escolha dessas vítimas. Os autores sabem exatamente onde descarregar sua violência.

A dominação masculina, como aponta Pierre Bourdieu, não depende apenas da força física — ela se sustenta em códigos sociais que silenciam mulheres, colocam-nas em posição de subserviência e naturalizam a violência contra seus corpos (BOURDIEU, 2003). Judith Butler, por sua vez, nos mostra que os corpos são construídos socialmente, e que o corpo feminino, nesse contexto, é reiteradamente colocado como objeto passível de controle e invasão (BUTLER, 2003).

Do ponto de vista jurídico, instrumentos como a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) e a Convenção de Belém do Pará (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1994) reconhecem a violência contra a mulher como uma violação grave de direitos humanos. Contudo, na prática, o enfrentamento desse tipo de violência ainda é sabotado por instituições que descredibilizam as vítimas, minimizam os agressores e perpetuam a lógica do perdão e da impunidade.

O homem que violenta uma mulher não é movido por impulso. Ele é movido por uma certeza: a de que sairá impune. Ele sabe que o corpo da mulher é mais exposto, menos protegido, mais desacreditado. É por isso que ele não escolhe enfrentar outro homem. Ele escolhe a mulher porque, historicamente, ela foi ensinada a temer, a ceder, a se calar.

O agressor de mulheres é, antes de qualquer coisa, um covarde. Um covarde que age com frieza, estratégia e oportunismo. Que se vale de um sistema conivente e de uma cultura que, ainda hoje, o protege.

Simone de Beauvoir já dizia: “não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009). E nessa construção, o corpo feminino é formatado pela obediência, pelo medo e pela invisibilidade.

Precisamos escancarar essa verdade: essa violência não é exceção. Ela é parte de um projeto social que estrutura desigualdades e legitima agressões. Não estamos diante de casos isolados, mas de um modelo de masculinidade que precisa ser urgentemente desconstruído.

Porque, no fundo, o problema nunca foi a perda de controle. O problema sempre foi o quanto os homens acham que têm o direito de controlar.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Seção 1, p. 1.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994). Adotada em Belém do Pará em 9 de jun. 1994. Disponível em: https://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-61.htm. Acesso em: 10 abr. 2025.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.