Escrito por Anne Caroline Fidelis
Mais uma vez, assistimos ao roteiro cruel e previsível do machismo: uma mulher sofre violência sexual, carrega consigo traumas e sequelas que talvez nunca se apaguem, e, em vez de apoio irrestrito, o que recebe da sociedade? Julgamento.
Dessa vez, o teatro da inversão veio em forma de vídeo: um pai ao lado do filho agressor, ambos diante da câmera, tentando reescrever a história. A vítima passa a ser questionada, suas roupas, suas escolhas, seu comportamento. O filho – um jovem de 19 anos, um homem feito – é apresentado como um garoto, alguém que, de alguma forma, teria sido levado ao erro.
Essa cena não é só repulsiva, é didática. Ela nos ensina, de forma escancarada, como o machismo estrutura a narrativa da violência: homens nunca são plenamente responsáveis por seus atos, enquanto mulheres sempre são responsabilizadas, mesmo quando são vítimas.
Se ela foi estuprada, “o que estava vestindo?”
Se foi agredida, “mas será que não provocou?”
Se denunciou, “não está exagerando?”
Se ficou em silêncio, “por que só fala agora?”
Essas perguntas não são ingênuas. Elas têm um propósito claro: manter o mundo confortável para os agressores e insuportável para as vítimas.
Enquanto meninos são ensinados a serem defendidos, protegidos, poupados, meninas são ensinadas a se prevenirem, se calarem, se esconderem. O resultado disso é uma sociedade que cria homens sem responsabilidade e mulheres sem paz. Como bem disse bell hooks, “a cultura ensina as mulheres a se culpabilizarem pela violência que sofrem, enquanto ensina os homens a se eximirem da responsabilidade pela violência que cometem”.
Mas o tempo da impunidade precisa acabar. O tempo da inversão da culpa precisa acabar. Porque não há roupa que justifique um estupro. Não há comportamento que autorize a violência. Não há narrativa que possa limpar as mãos de um agressor.
E o pai que faz um vídeo ao lado do filho tentando salvar sua imagem está, na verdade, assinando um atestado: o de que criou um homem incapaz de reconhecer suas próprias ações e responder por elas. A pior vergonha que um pai pode carregar.