Colabore com o Eufemea
Advertisement

Silêncios que gritam: quando a sociedade normaliza a violência, o resultado é a tragédia repetida

Por Bruna Sales

Há silêncios que nos dizem mais do que os gritos. E, semanas atrás, em Maceió, dois desses silêncios vieram à tona de maneira brutal, revelando não apenas tragédias individuais, mas um colapso sistêmico que segue sendo varrido para debaixo do tapete. A dor é íntima, mas o problema é coletivo. E o que se repete, com variações de cenário, é a banalização da violência — especialmente contra mulheres e crianças.

Vivemos em uma sociedade que aprendeu a racionalizar o inaceitável. Quando a agressão acontece, corre-se para explicá-la: foi um mal-entendido, uma crise emocional, um momento de descontrole. A vítima é questionada. O agressor, interpretado. E quanto mais alto for o seu capital social, mais elaboradas são as narrativas (e quantidade de pessoas) que tentam protegê-lo.

É curioso — e assustador — como seguimos mais dispostos a defender reputações do que a proteger vidas. Quando a violência é filmada, minimiza-se. Quando é verbal, ridiculariza-se. Quando é fatal, silencia-se. E nesse percurso, a sociedade naturaliza comportamentos que deveriam ser absolutamente intoleráveis.

Do outro lado do mesmo espelho, estão mulheres adoecidas pela solidão, pela sobrecarga e pela falta de suporte. Muitas, depois de anos em relações abusivas, sequer reconhecem mais os próprios limites, desejos ou vontades. A autoestima já foi corroída, e o medo de romper é atravessado pela ideia de que o amor — ou o pouco que se tem — deve ser sustentado a qualquer custo.

Valeska Zanello, fala brilhantemente da “prateleira do amor”, mostrando como as mulheres, desde cedo, são ensinadas a se autoavaliar com base na sua capacidade de serem amadas, desejadas, escolhidas. E, nessa corrida, muitas acabam aceitando migalhas emocionais como se fossem banquetes, inclusive exercendo uma maternidade compulsória e indesejada. A subjetividade feminina é condicionada a priorizar o outro — e o preço disso é o adoecimento psíquico, a sobrecarga, o silêncio.

O puerpério, por exemplo, ainda é romantizado como um tempo de plenitude — quando, na verdade, é muitas vezes um mergulho sem colete em mar aberto. E o Estado? Ausente. O cuidado psicológico? Subestimado. A escuta? Condicional.

A saúde mental das mulheres precisa urgentemente deixar de ser pauta secundária. Ela é questão de sobrevivência. E não só das mulheres — mas das crianças, das famílias e da própria ideia de comunidade.

É preciso dizer com todas as letras: nenhuma violência se justifica. Nenhuma. Nem aquela que resulta na morte de uma criança de apenas quinze dias de vida, nem a que tenta se escorar na ideia de que “não houve soco”. Como se a brutalidade só existisse quando se fecha o punho. Conduzir alguém com violência, machucar, abrir feridas — físicas ou não —, tudo isso é agressão. E o esforço para negar ou suavizar o que está diante dos olhos também é uma forma de violência.

Enquanto insistirmos em relativizar a dor com base na forma como ela foi infligida, seguiremos protegendo agressores e deslegitimando vítimas. E essas tragédias, infelizmente, continuarão a se repetir.

Não podemos mais esperar a violência gritar para escutá-la. Os sinais estão sempre lá: no desprezo cotidiano, na fala atravessada, na ausência de política pública, na piada disfarçada de opinião, na mulher que adoece em silêncio e no homem que se acha acima de qualquer consequência.

O desafio agora é romper com o ciclo da omissão. E isso começa com um compromisso radical com a verdade, com a escuta, e com o fim da conivência. Porque a vida — de todas as vidas — precisa, finalmente, importar.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.