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Violência vicária: quando a maternidade é usada como arma

Por Anne Caroline Fidelis e Bruna Sales

“Quando me separei, pensei que finalmente teria paz. Mas foi quando a guerra começou: ele passou a me atingir através do nosso filho. Cortou as visitas, me acusou de ser desequilibrada, e cada decisão judicial era uma punhalada. Não batiam mais no meu corpo, mas na minha alma.” Esse é o relato de uma mãe que não quis ser identificada. Ela é vítima de violência vicária.

No silêncio das salas de audiência, nos corredores dos fóruns, ou nas madrugadas insones de milhares de mães brasileiras, uma dor pouco nomeada ganha forma: a violência vicária. Trata-se de uma violência de gênero que se perpetua por meios indiretos, mas devastadores. É quando o agressor se vale do vínculo materno para continuar controlando, punindo ou ferindo a mulher após o fim da relação. Um tipo de violência que, embora sutil aos olhos da lei, é brutal para quem a vive.

O conceito surgiu a partir da psicóloga espanhola Sonia Vaccaro, que passou a estudar os impactos do uso dos filhos como instrumentos de vingança e controle após a separação. A palavra “vicária” carrega a ideia de substituição: quando a agressão direta não é mais possível, ela se realiza por intermédio de outra pessoa — geralmente os filhos ou filhas da mulher. Aqui, a maternidade, antes espaço de cuidado e vínculo, é pervertida e transformada em campo de guerra.

O Brasil ainda engatinha no reconhecimento legal desse tipo de violência. Mas a pressão dos movimentos feministas e a atuação de juristas comprometidas com a justiça social vêm abrindo caminho. O Projeto de Lei n.º 3880/2024, em tramitação no Congresso Nacional, propõe a inclusão da violência vicária como uma das formas de violência psicológica previstas na Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006). A proposta reconhece que impedir o contato da mãe com os filhos, ameaçar a guarda como retaliação ou mesmo promover o afastamento afetivo deliberado é uma forma grave de punição emocional.

Ainda que o termo “alienação parental” tenha sido amplamente utilizado em disputas judiciais familiares, precisamos fazer um deslocamento crítico. A chamada “alienação” foi muitas vezes usada para deslegitimar denúncias maternas de violência, invertendo a lógica da proteção para culpabilizar mulheres. A perspectiva feminista do direito nos convida a enxergar esses casos como manifestações de abuso psicológico institucionalizado, que operam sob o manto da neutralidade jurídica para perpetuar relações de poder e opressão.

Judith Butler nos lembra que “as normas que nos moldam também nos ferem” (BUTLER, 2015, p. 37). E é justamente nesse terreno normativo — do que se entende como “boa mãe”, “justiça” e “guarda compartilhada” — que a violência vicária se esconde. Não raro, vemos mães sendo punidas por protegerem seus filhos de pais abusivos, tendo sua sanidade colocada em dúvida, sua autonomia questionada, sua maternidade atacada.

Casos como o de Sandra Mara, assassinada junto com seus dois filhos pelo ex-companheiro em 2021, ou de tantas mulheres anônimas que nos procuram em nossos escritórios ou nos grupos de apoio, revelam o impacto dessa violência que não deixa marcas visíveis, mas destrói subjetividades.

Mas se é verdade que o machismo se reinventa, também é verdade que nós, mulheres, temos reinventado a resistência. Nunca estivemos tão unidas, organizadas e conscientes do nosso direito de viver livres de violência. Associações de mulheres advogadas, coletivos maternos, redes de apoio e juristas comprometidas com a justiça social estão construindo caminhos para transformar dor em luta e luta em conquista.

É essa força coletiva que sustenta o avanço do PL 3880/2024, que movimenta os debates nas universidades, que pressiona por formações no Judiciário com perspectiva de gênero. E é essa força que garante que nenhuma mulher mais precise viver em silêncio.

Reconhecer a violência vicária é ampliar o alcance da Lei Maria da Penha, reafirmando seu caráter transformador. É dizer, com todas as letras, que os filhos não são ferramentas de vingança. E que nenhuma mulher deve ter sua maternidade usada contra si.

Que este artigo seja também um convite à esperança: esperança ativa, que se organiza, denuncia, acolhe e transforma. Porque justiça para as mulheres é uma construção coletiva. E nós estamos fazendo essa história acontecer.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006.

BRASIL. Projeto de Lei nº 1904, de 2024. Altera a Lei nº 11.340, de 2006, para incluir a violência vicária como forma de violência psicológica. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 12 abr. 2025.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

VACCARO, Sonia. Violencia vicaria: una forma de violencia de género. España: Instituto de Psicología Jurídica, 2020.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.