Por Bruna Sales
Nem sempre o Dia das Mães foi sobre flores embrulhadas em celofane e almoços em restaurantes lotados. Antes de ser engolida pela lógica do consumo afetivo, essa data foi imaginada como um ato político, de insurgência feminina e pacifismo radical.
A primeira mulher a propor uma celebração das mães foi Julia Ward Howe, escritora, abolicionista e sufragista norte-americana. Em 1870, ela lançou a Proclamação do Dia das Mães, um manifesto que conclamava as mulheres do mundo a se levantarem contra as guerras e se organizarem publicamente pela paz. Para Julia, as mães — aquelas que geram e cuidam da vida — não podiam permanecer em silêncio diante da destruição sistemática causada por decisões masculinas e militarizadas. O chamado era claro: “Levantemo-nos, mulheres desta terra!”.
Décadas depois, Anna Jarvis, também americana, deu novos contornos à proposta. Após perder sua mãe, iniciou uma campanha para oficializar um dia de homenagem às mães — agora com foco no vínculo familiar e no reconhecimento sentimental. A proposta ganhou força, até ser oficializada nos Estados Unidos em 1914, pelo presidente Woodrow Wilson, como o “Mother’s Day”, celebrado no segundo domingo de maio.
Mas o que poucos sabem é que Anna Jarvis passou os últimos anos de vida revoltada com o rumo que a própria criação tomou. Ela condenava a mercantilização do afeto, os cartões prontos, os buquês sem alma e os lucros corporativos que silenciavam a verdadeira reverência à maternidade. O Dia das Mães, dizia ela, foi transformado em uma vitrine — e não em um altar de respeito.
No Brasil, a data foi oficializada em 1932, durante o governo Getúlio Vargas, e, com o tempo, passou a ser amplamente adotada pela Igreja Católica. O tom conservador se sobrepôs à sua gênese subversiva.
Mas a história não mente: o Dia das Mães nasceu da política, não da vitrine. Nasceu do luto transformado em luta, da maternidade como potência social, da recusa em aceitar que a vida gerada seja dilacerada por estruturas de poder.
Celebrar o Dia das Mães é também revisitar essas raízes — lembrar que ser mãe nunca foi apenas um gesto biológico ou afetivo. É também, e talvez principalmente, uma posição política. Um lugar de resistência, de reinvenção cotidiana e de cuidado como forma de justiça.
Neste segundo domingo de maio, que possamos nos lembrar das palavras de Julia Ward Howe e do incômodo de Anna Jarvis. Entre a flor no prato e a fúria pacifista, há uma história que merece ser contada — e retomada.
Referências:
HOWE, Julia Ward. Mother’s Day Proclamation – 1870. Boston: Boston Peace Society, 1870. Disponível em: https://www.plough.com/en/topics/justice/nonviolence/the-origins-of-mothers-day. Acesso em: 10 maio 2025.
JARVIS, Anna. The Mother’s Day Movement. The Anna Jarvis Birthplace Museum. Disponível em: http://www.annajarvismuseum.org. Acesso em: 10 maio 2025.
MAY, Elaine Tyler. Homeward Bound: American Families in the Cold War Era. New York: Basic Books, 1999.
MIRANDA, Marta. A politização da maternidade e o Dia das Mães: entre o afeto e a resistência. Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 2, p. 553-564, 2013.
SILVA, Ivone Gebara. Romper o silêncio: uma fenomenologia do grito das mães. São Paulo: Vozes, 2010.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
VARGAS, Getúlio. Decreto nº 21.366, de 5 de maio de 1932. Institui o Dia das Mães no Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 6 maio 1932. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 10 maio 2025.