A cena da novela Vale Tudo em que a personagem Lucimar, interpretada por Ingrid Gaigher, exige o pagamento da pensão do pai de seu filho não foi apenas dramaturgia: foi um espelho. Em apenas uma hora após sua exibição, mais de 270 mil mulheres acessaram os canais da Defensoria Pública em todo o país.
O número impressionante – 4.500 acessos por minuto – revela o quanto essa narrativa tocou a vida de tantas mães que, como Lucimar, enfrentam diariamente o abandono paterno e o desafio de sustentar seus filhos sozinhas, com dignidade e coragem.
Lucimar representa milhares de mulheres brasileiras que enfrentam a maternidade solitária, a negligência paterna e, muitas vezes, a violência — emocional, econômica e institucional. Isso porque, ao buscar o Judiciário para garantir o direito à subsistência digna de suas crianças, essas mulheres não encontram apenas processos burocráticos, mas também enfrentam ameaças e retaliações. O gesto legítimo de pedir justiça se transforma, em muitos casos, em campo de medo.
E se Lucimar morasse em Alagoas, por onde começaria?
Provavelmente buscaria um advogado ou advogada particular (que idealmente deve ser especializado/a no direito das famílias) ou o apoio da Defensoria Pública do Estado, que se dedica com afinco ao atendimento da população, mesmo com estrutura limitada e servidores em número insuficiente para a demanda.
Na capital, existem varas especializadas em Direito de Família, mas isso não tem sido suficiente para garantir um atendimento humanizado e célere. Já nas demais regiões do estado, a realidade é mais dura: varas não especializadas acumulam múltiplas competências, e a ausência de equipes técnicas agrava ainda mais a precariedade da escuta e da resposta judicial.
Ainda que o Judiciário alagoano promova ações formativas voltadas à magistratura, observa-se uma baixa adesão às capacitações que envolvem a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ (2022).
Essa lacuna formativa acaba por reproduzir julgamentos que desconsideram as desigualdades históricas entre homens e mulheres, perpetuando estigmas e naturalizando a sobrecarga de trabalho sobre as mães. Como aponta Bourdieu (2001), as estruturas simbólicas de dominação patriarcal se infiltram nas instituições, tornando a desigualdade quase invisível — e, por isso, mais difícil de ser enfrentada.
Por isso, entidades como a AMADA – Associação das Mulheres Advogadas de Alagoas têm atuado como protagonistas na exigência de uma justiça com perspectiva de gênero. A entidade tem promovido formações e articulações com o sistema de justiça, cobrando uma atuação compatível com a realidade vivida por mulheres como Lucimar. Aplicar o protocolo do CNJ não é uma opção: é um dever institucional e ético.
Há avanços importantes. Decisões recentes do STJ têm reconhecido, por exemplo, que o trabalho doméstico e o cuidado exclusivo com os filhos configuram contribuição direta à construção do patrimônio familiar e devem ser compensados juridicamente (Brasil, 2022). Esse reconhecimento dialoga com o pensamento de Silvia Federici (2019), para quem o trabalho de reprodução social — embora invisibilizado — é a base do funcionamento da sociedade e deveria ser reconhecido, inclusive economicamente.
O caminho da ação de alimentos até sua execução é longo. Exige petição inicial, audiência, provas, fixação de valores e, em muitos casos, execução judicial diante do inadimplemento. Não raro, as mães se deparam com a morosidade do sistema, com decisões que minimizam suas urgências e com interlocutores que ainda reproduzem a lógica da conciliação a qualquer custo. No entanto, esse percurso ainda é, para muitas, o único disponível.
Há também núcleos de mediação e conciliação — uma via possível, desde que o diálogo não esteja contaminado por ameaças, chantagens ou relações assimétricas de poder. Quando a relação é marcada pelo medo, como no caso de Lucimar, o Judiciário precisa oferecer o que o diálogo não pode: proteção e firmeza.
Por isso, é urgente que mulheres conheçam seus direitos e saibam que buscar a justiça não é um ato de egoísmo, mas de proteção e cuidado com os filhos. E que a justiça, por sua vez, precisa reconhecer o lugar dessas mulheres com a devida sensibilidade. Isso exige formação, comprometimento e transformação estrutural. Não basta que os protocolos existam; é preciso que sejam aplicados.
Lucimar é muitas. Está em Maceió, no Sertão, nas filas da Defensoria, nos corredores do Fórum, nas salas de conciliação. E enquanto houver Lucimares, é nosso dever construir um sistema que escute, proteja e respeite.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.733.560/SP. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 2022.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 20 mai. 2025.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. São Paulo: Elefante, 2019.