Foto: Dayanna/Arquivo Pessoal
A alagoana Dayanna Klécia, arquiteta de 28 anos, enfrentou uma dor silenciosa que muitas mulheres só descobrem tardiamente: a insuficiência istmo-cervical (IIC). Após quatro gestações e perdas, ela carrega não apenas a ausência, mas também as marcas de diagnósticos tardios e de um sistema de saúde despreparado para acolher o luto materno.
A insuficiência istmo-cervical (IIC) é uma condição obstétrica pouco conhecida fora dos consultórios médicos, mas que tem impacto profundo na vida de mulheres que enfrentam perdas gestacionais inesperadas. Caracterizada pela falha do colo do útero em se manter fechado durante a gravidez, a IIC costuma se manifestar de forma abrupta e sem sintomas prévios, o que dificulta o diagnóstico precoce.
De acordo com um estudo publicado na Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (RBGO), a IIC acomete entre 0,05% e 1,8% das gestações. Estima-se que a insuficiência cervical seja subdiagnosticada, embora possa ser responsável por cerca de 16% a 20% dos abortamentos espontâneos no segundo trimestre.
“Sou mãe de quatro bebês”
Ao Eufêmea, Dayanna Klécia contou que descobriu a IIC na consulta após a perda da primeira filha. “Tinha feito uma ultrassonografia morfológica uma semana antes. Estava tudo bem. De repente, entrei em trabalho de parto com 17 semanas”, relata.
A filha, Elis, nasceu sem vida. O diagnóstico, inicialmente, trouxe um certo alívio por dar nome à causa da perda, mas a sensação logo deu lugar à culpa. “Foi o meu corpo incompetente que não conseguiu segurar minha bebê. Emocionalmente, o luto por um filho ou filha é devastador”, afirma.
Dayanna entrou em trabalho de parto em casa, sozinha. Ela relata ter vivido um atendimento hospitalar desumanizado. “Cheguei ensanguentada e demoraram a me atender. Quando a médica me avaliou, disse friamente que não ouvia batimentos. Fui transferida para outro hospital, onde entrei em trabalho de parto sem saber. Minha filha foi expulsa no vaso sanitário e colocada em uma sacola plástica. Não tive chance de tocá-la.”
Após a curetagem, foi encaminhada à terapia para enfrentar o luto. Dois meses depois, engravidou novamente. Mesmo com o diagnóstico em mãos, ainda se sentia emocionalmente frágil. “Fiz cerclagem simples com 16 semanas, tomei progesterona, fiz repouso. Mesmo assim, entrei em trabalho de parto com 22 semanas e perdi meu segundo filho, Vicente. A equipe médica foi mais acolhedora, o que me ajudou emocionalmente, mas a dor era imensurável.”
Transformar dor em força
A terceira gestação terminou ainda nas primeiras semanas. Já a quarta, de Alice, contou com acompanhamento especializado, cerclagem dupla e repouso absoluto. Com 16 semanas, no entanto, a bolsa rompeu. “Ela sobreviveu nove dias sem líquido. Fiquei internada, sem me levantar da cama. Depois, o coração dela parou. Pude segurar minha filha nos braços e viver o luto com dignidade.”
Dayanna segue em acompanhamento médico. A indicação atual é uma cerclagem interna, um procedimento mais complexo. “Sem espiritualidade e terapia, eu não teria conseguido. Transformei essa dor em força para ajudar outras mulheres a não passarem pelo que eu passei.”
Ela aponta a falta de preparo técnico e emocional da rede de saúde como um dos principais entraves. “Na primeira gestação, ninguém solicitou a ultrassonografia transvaginal para medir o colo. Depois da perda de Vicente, comecei a estudar a condição por conta própria e encontrei apoio no perfil @conscientizacaodaiicoficial e no Instituto do Luto Parental.”
Na tentativa de acolher, muitas pessoas repetiam frases que a feriam profundamente.
“Diziam que, em breve, eu teria outro filho e que ‘ficaria tudo bem’. Para mim, isso soava como um apagamento da memória dos meus filhos. Era como se, ao ter um bebê vivo nos braços, eu devesse esquecer completamente os filhos que perdi e viver um ‘felizes para sempre’. Como eu poderia esquecer dos filhos que carreguei e pari?”, pergunta.
“Mãe, nunca se esqueça: não foi culpa sua”

Gabriela da Silva Soares, 29 anos, servidora pública, descobriu a insuficiência istmo-cervical durante sua primeira gestação, em 2023, aos 25 semanas. O diagnóstico veio após uma ultrassonografia transvaginal, que identificou o colo do útero com apenas 17 milímetros. “O médico foi muito empático, mas explicou que não havia mais tempo para realizar a cerclagem. O risco de infecção era alto.”
Até aquele momento, Gabriela não apresentava sintomas. “Segurei o choro e ouvi as orientações. Usei progesterona e fiquei em repouso. Nos dias seguintes, qualquer dorzinha era motivo de pânico.” Na tentativa de entender melhor o que enfrentava, ela buscou informações na internet. “Assisti a todos os vídeos sobre IIC. Eles me informaram e me deram esperança.”
Com 28 semanas, o colo reduziu para 9 mm. O bebê nasceu com 30 semanas e 6 dias, mas morreu horas depois, devido a uma má-formação no tórax — condição que não tinha relação com a IIC.
Na segunda gestação, já ciente da condição, Gabriela fez cerclagem com 12 semanas e iniciou o uso de progesterona desde o início. Desta vez, a gravidez chegou até as 39 semanas. “Minha filha nasceu saudável. Cada consulta era um alívio. O colo estava sempre acima de 25 mm, então não precisei de repouso absoluto.”
Ela também relembra os efeitos físicos e emocionais do tratamento. “As costas doíam, tive cólicas por causa da progesterona, fui afastada do trabalho. O medo ainda existia.”
A experiência reforçou, para Gabriela, a importância do acesso à informação. “Conheço mulheres que só descobriram a IIC na terceira gestação. A condição é silenciosa. Por isso, toda gestante deveria fazer ultrassonografia transvaginal entre 14 e 24 semanas.”
Assim como Dayanna, ela também faz um alerta sobre o que não dizer a uma mãe em luto. “Jamais diga: ‘Logo você engravida de novo’. Outro filho não substitui o que se foi. Se não souber o que dizer, apenas sinta com a mãe.”
E deixa um recado direto, para quem precisa ouvir: “Mãe, nunca se esqueça: não foi culpa sua. Nada do que você fez causou essa condição”, reforça.
O que é IIC e por que é tão difícil identificar

A ginecologista e obstetra Milzi Sarmento explica que a insuficiência istmo-cervical (IIC) é caracterizada pela incapacidade do colo do útero de se manter fechado durante a gestação, o que pode levar a um parto prematuro súbito, muitas vezes sem dor ou sangramento. “O colo vai abrindo gradativamente por fraqueza. Quando a gestante percebe algo, o feto ou a bolsa já está saindo.”
A condição pode ter causas genéticas ou ser adquirida, a exemplo de cirurgias prévias no colo do útero (como a conização), procedimentos traumáticos ou dilatações forçadas.
O diagnóstico é feito com base no histórico clínico e em ultrassonografias transvaginais, embora a simples identificação de um colo curto não seja suficiente para confirmar a IIC. “O ideal é que o procedimento de cerclagem seja feito entre 12 e 16 semanas”, orienta a médica.
Segundo Milzi, o acompanhamento de gestantes com IIC deve ser constante, com atenção especial a sinais como dor, sangramento ou secreção vaginal. A retirada da cerclagem é geralmente indicada por volta das 36 semanas.
Por fim, ela reforça que “toda paciente com histórico sugestivo de IIC ou que tenha realizado procedimentos no colo do útero deve ser avaliada desde o início da gestação por um obstetra experiente”.