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Uma mulher trans denunciou ao Conselho Regional de Psicologia de Alagoas (CRP-AL) um psicólogo por condutas que ela classifica como abusivas, antiéticas e transfóbicas durante sessões de psicanálise em Maceió. Ao Eufêmea, ela relatou à reportagem que o profissional feriu princípios do Código de Ética da Psicologia, ultrapassando os limites do setting terapêutico e provocando agravamento do seu estado emocional. Os nomes da paciente e do psicólogo não serão divulgados.
“Entre julho e outubro de 2023, fui atendida por esse psicólogo. O que deveria ser um espaço de escuta e acolhimento virou um ambiente de manipulação, gaslighting e violência simbólica”, afirma a mulher ao Eufêmea.
A denúncia, enviada formalmente ao CRP, inclui diversos episódios de discriminação por identidade de gênero, imposição de crenças pessoais e violação de sigilo. A paciente afirma que, em vez de acolhida, recebeu julgamentos, humilhações e comentários que colocaram em xeque sua identidade como mulher trans e sua saúde mental.
“Você não pertence a essa classe”
Durante uma das sessões, ao mencionar seu desejo de casar e ser considerada esposa, a paciente afirma ter ouvido do psicólogo que isso não era possível porque ela “não pertencia àquela classe”. Ao questionar se ele se referia à sua condição de mulher trans ou à sua posição socioeconômica, o profissional teria confirmado que uma mulher trans branca e de classe alta poderia sim “pertencer”, ao contrário dela.
“Foi um dos momentos mais cruéis. Ele me separou das outras mulheres como se eu fosse de uma categoria inferior. Eu não era vista como mulher legítima”, disse.
A paciente também relata que, ao longo do processo, o psicólogo insistia em uma visão vitimizada e estereotipada das pessoas trans, referindo-se a ela e outras como “saco de pancadas da sociedade” e dizia que ela estava em “situação de vulnerabilidade”, sem especificar se era pela identidade de gênero, classe social ou diagnóstico psiquiátrico.
Ela também conta que, em uma das primeiras sessões, perguntou diretamente se ele já havia atendido pessoas trans. A reação foi defensiva e agressiva. “Quando eu perguntei se ele já tinha experiência em tratar pessoas trans, ele ficou irritado e rebateu: ‘pra quê você quer saber disso?’. Eu queria evitar tudo o que acabou acontecendo.”
A paciente relata que, além de não possuir experiência, o psicólogo não conhecia sequer os termos adequados. “Na primeira sessão, ele disse ‘o trans’ ao se referir a pessoas trans. Depois, falou de um conhecido homem trans dizendo: ‘achei que ele era um homem… um homem só homem mesmo’”, relembra. “Ele engoliu a expressão ‘homem normal’, mas ficou evidente o preconceito e a desinformação.”
Terapia ou julgamento?
Entre os relatos que a paciente contou há episódios de desqualificação de traumas, invalidação emocional e atitudes que, segundo ela, feriram gravemente a ética terapêutica. Ao relatar violências vividas na infância, por exemplo, o psicólogo teria aplaudido ironicamente. Quando contou sobre um episódio de violência sexual, ouviu: “Por que você não reagiu?”.
Outros comentários reforçaram o julgamento e a minimização de sua história. “Ele perguntou se um roteiro de filme que escrevi na faculdade tinha sido feito por mim, com um tom de desdém. Foi machista, ofensivo e profundamente humilhante.”
Comportamentos ambíguos e erotização
A mulher também descreveu condutas com conotação afetivo-erótica incompatíveis com o espaço clínico. Frases como “gostei do seu lado histérica” e elogios à sua escolha de comida em ligações por telefone foram mencionadas como indícios de uma postura ambígua, que, segundo ela, extrapolava o vínculo profissional.
Em um episódio descrito como especialmente simbólico, o psicólogo teria dito: “Sua transição de gênero é mais incrível do que qualquer coisa que uma cantora pop já fez”. A fala, afirma ela, soou como uma idealização fetichizada, a colocando como objeto de admiração e não como paciente.
“Senti que não estava sendo escutada, mas avaliada com interesse pessoal, como se meu funcionamento clínico produzisse nele uma forma de prazer privado”, acrescentou.
Violação de sigilo e manipulação familiar
Sem autorização, o psicólogo teria entrado em contato com a mãe da paciente após oferecer um desconto nas sessões, pedindo que ela não deixasse a filha reduzir a frequência do tratamento. O episódio, além de representar quebra de sigilo, evidenciou, segundo a denúncia, um abuso de poder e manipulação emocional.
“Ele dizia que era o único que não me patologizava por ser trans, e que lá fora só tinha gente querendo me rotular. Isso me prendeu ali por mais tempo do que eu queria.”
“A dor não foi só pela violência, mas pela quebra de confiança”
Desde o fim do atendimento, a paciente afirma estar em reconstrução. Hoje, acompanha o andamento da denúncia e busca retomar a confiança em espaços terapêuticos.
“Não é fácil denunciar um psicólogo. Mas a dor que ele causou precisa ser nomeada. Não quero que outras pessoas passem pelo que passei.” Ela disse que a dor não foi só pela violência, mas pela quebra de confiança.
O que diz o CRP
Por meio da Comissão de Ética, o CRP respondeu que o caso está sob análise e ressaltou que: “Toda e qualquer representação ou processo ético em tramitação neste Conselho segue o Código de Processamento Disciplinar (CPD), Resolução CFP 011/2019. No art. 15 está expressamente previsto o dever de sigilo de todos os envolvidos no processo.”
O Conselho acrescenta que apenas as partes e seus procuradores têm acesso aos autos e que qualquer quebra de sigilo pode gerar responsabilização civil e penal.