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“Quis mostrar um homem negro que cuida”: de Alagoas para Cannes, Stella Carneiro dá voz à memória afetiva

O povoado da Massagueira fica em Marechal Deodoro, em Alagoas, às margens da Lagoa Manguaba, em uma região marcada por raízes pesqueiras e tradições ribeirinhas. Foi nesse cenário que a cineasta Stella Carneiro cresceu, entre os manguezais e o cotidiano de um Nordeste ainda pouco retratado nas telas. Sua infância nesse ambiente inspira As Filhas do Mangue, longa-metragem em desenvolvimento que foi apresentado este ano no Festival de Cannes, na 78ª edição.

Participação em Cannes

Foto: Arquivo Pessoal

À Eufêmea, Stella Carneiro conta que foi uma das selecionadas para integrar o programa La Factory des Cinéastes, da Quinzena dos Cineastas no Festival de Cannes. A iniciativa promove talentos emergentes do cinema internacional e, neste ano, teve mentoria do diretor Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely). O programa reúne jovens cineastas de diversas partes do mundo e é reconhecido por revelar nomes promissores da sétima arte.

A seleção para o programa envolveu um processo competitivo entre cineastas brasileiros. Para Stella, estar em um espaço como esse representa mais do que um reconhecimento individual, é também a chance de ampliar o imaginário cinematográfico sobre o Brasil, especialmente sobre o Nordeste.

“Estar fora do Brasil me fez olhar com mais nitidez para o lugar onde cresci. A distância ajudou a construir esse imaginário sobre Alagoas e a elaborar essa narrativa, que parte da história do meu pai e das minhas irmãs”, afirmou.

Refletindo sobre sua presença no festival, Stella destaca que a participação nordestina em Cannes não é inédita, mas ainda marcada por desequilíbrios de gênero.

“Falam como se fosse novidade o Nordeste estar em Cannes, mas desde Cacá Diegues, Glauber Rocha, Karim Aïnouz, Kleber Mendonça Filho, nós já estamos aqui. Isso é uma tradição.”

Ainda assim, ela observa que os nomes mais reconhecidos são, em sua maioria, homens. “São poucas as mulheres nordestinas que tiveram essa oportunidade. Chegar até aqui representa também ocupar esse espaço.”

Do desejo de fazer cinema à formação internacional

Natural de Maceió, Stella tem construído sua trajetória acadêmica e profissional fora de Alagoas. Formada em Cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo, ela concluiu o mestrado em roteiro pelo programa europeu Kino Eyes, com passagens por Portugal, Escócia e Estônia. Atualmente, cursa doutorado em Artes Midiáticas na Universidade Lusófona, em Lisboa.

Sua formação internacional começou por uma lacuna no estado: a ausência de cursos de cinema na Universidade Federal de Alagoas. “Sempre soube que, se quisesse fazer cinema, teria que sair do estado. Minha mãe, professora universitária, me orientou a continuar estudando. E foi o que fiz”, afirma. Esse incentivo familiar foi essencial para o caminho profissional que trilhou por diferentes países e culturas.

Ao longo dos últimos anos, Stella participou de projetos audiovisuais em países como Islândia e Estônia. Em cada novo trabalho, percebeu como a arte brasileira é reconhecida lá fora. “Conheci pessoas que eram fãs de Chico Buarque e Djavan. Às vezes, a gente não tem noção do impacto que o Brasil tem no mundo”, conta.

O pai negro que cuida

Stella é a filha mais velha entre seis irmãos — quatro meninas e dois meninos — e cresceu em um ambiente familiar marcado por afeto e resiliência. Durante o governo Collor, seu pai foi vítima de perseguição política e impedido de trabalhar. Nesse período, ele assumiu os cuidados da casa, enquanto a mãe sustentava a família trabalhando como professora universitária.

Ela conta que essa vivência teve um papel central na construção de sua sensibilidade artística. “Quis mostrar um pai presente, cuidador, afetuoso. No Brasil, onde tantas crianças sequer têm o nome do pai no registro, é urgente representar essa realidade, ainda mais em um estado como Alagoas, onde muitas crianças negras crescem sem a presença paterna”, afirma.

A decisão de trazer o pai para o centro da narrativa de seu longa também é uma resposta política e afetiva às ausências que marcam o cinema nacional. “A maioria dos personagens negros no cinema ainda é associada à violência ou ao abandono. Eu quis mostrar o oposto: um homem negro que cuida, que cria, que ama.”

O filme As Filhas do Mangue

Foto: Arquivo Pessoal

Durante sua participação no programa em Cannes, Stella apresentou o projeto de seu primeiro longa-metragem, As Filhas do Mangue, que tem como produtor Rafhael Barbosa — um nome importante do cinema negro em Alagoas, com diversos projetos nas áreas de terror, animação, drama, entre outros. O filme é inspirado em suas memórias de infância vividas na comunidade da Massagueira, em Marechal Deodoro, e narra a relação entre um pai negro e suas filhas. A obra aborda temas como afeto, identidade e a experiência de uma infância à margem das grandes narrativas urbanas.

Além da temática familiar, o projeto propõe um olhar sobre o Nordeste que rompe com os clichês visuais e narrativos. Para Stella, é fundamental que o público brasileiro e internacional conheça outros retratos possíveis da região.

“Eu nunca tinha ido a Fortaleza, mas já tinha visto a cidade em filmes. Isso contribui para o imaginário coletivo. A gente conhece Nova York, Paris, porque vê o tempo todo na tela. É importante fazer o mesmo com os nossos espaços, como Alagoas.”

Do Brasil para Cannes: quando o cinema é resistência e representatividade

Foto: Arquivo Pessoal

Stella acredita que o momento atual do cinema brasileiro é especialmente significativo. Nos últimos anos, o país tem se destacado em festivais como Berlim, Veneza e Cannes, e a presença de produções nacionais no circuito internacional vem crescendo. Em 2024, inclusive, o Brasil foi o país de honra no Festival de Cannes, o que ampliou ainda mais a visibilidade de obras brasileiras.

Segundo a diretora, esse reconhecimento internacional também serve como resposta ao chamado “complexo de vira-lata”, ainda presente no imaginário coletivo.

“Somos um país continental, com 220 milhões de pessoas, e temos capacidade de fazer qualquer tipo de filme: drama, comédia, ação, arte, experimental. Essa diversidade precisa ser vista e valorizada”, defende.

Ela reforça que sua presença em Cannes não se trata de mérito individual, mas sim de um conjunto de fatores: políticas públicas, apoio e resistência.

“Chegar até aqui, sendo uma mulher negra, de Maceió, mostra que é possível. Não como um discurso de meritocracia, mas como a certeza de que, com apoio, políticas públicas e insistência, nossas vozes serão ouvidas.”

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.