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Romantização da maternidade: o peso invisível que adoece mães todos os dias

Foto: Freepik

A gravidez, muitas vezes idealizada como uma fase de plenitude e realização, também é considerada uma das três principais situações de risco para crises na vida de uma mulher, ao lado da adolescência e do climatério. As alterações hormonais durante a gestação e o pós-parto, somadas à pressão social para que a mulher exerça o papel de mãe com perfeição, podem trazer consequências severas para a saúde mental. Ainda assim, pouco se fala sobre isso.

Dados da pesquisa “De Mãe em Mãe”, que investigou a saúde mental das mães brasileiras, revelam que 97% das entrevistadas se sentem sobrecarregadas quase todos os dias da semana. O levantamento, que ouviu mais de 800 mulheres em diferentes regiões do país, também mostra que duas em cada três classificam sua saúde mental como “péssima”.

Entre os transtornos mais comuns estão a depressão pós-parto, a ansiedade generalizada, as crises de pânico e o burnout materno — uma condição marcada pelo esgotamento emocional diante da alta demanda de cuidados com a criança.

De onde vem a cobrança pela maternidade perfeita?

Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Anna Carolina, psicóloga especializada em maternidade, é comum que, durante a gestação e o pós-parto, exista uma dualidade de sentimentos. A mulher pode sentir alegria por estar gerando uma vida, mas também tristeza e culpa por precisar abrir mão de muitas coisas por tempo indeterminado.

A cobrança social para que a maternidade seja sempre vista como algo desejado e positivo faz com que muitas mulheres se sintam pressionadas a corresponder às expectativas de viver uma experiência perfeita. A consequência dessa negação se reflete diretamente na saúde mental e na qualidade de vida da mulher, como explica Anna.

“Lidar com a realidade sem um preparo emocional e sem apoio para falar sobre o que realmente vive e sente pode até gerar um adoecimento psicológico, o que muitas vezes acontece de forma silenciosa”, diz.

A psicóloga reforça que não há nada de errado em se sentir triste ou ter dúvidas em relação à maternidade. Em casos de sobrecarga emocional, buscar apoio psicológico especializado em saúde mental materna pode ser essencial para enfrentar os desafios.

O papel do apoio psicológico na maternidade

Na mesma semana em que recebeu o diagnóstico de gravidez de risco, Gabriela* foi demitida do emprego. Como se não bastasse, ouviu da própria mãe que “poderia morrer durante o parto” e ainda precisou lidar com a rejeição dos avós paternos do bebê. Tudo isso aconteceu enquanto ela iniciava o desmame dos estabilizadores de humor que usava para tratar o TDAH.

Gabriela procurou apoio psicológico ainda durante a gestação, tentando lidar com a avalanche de sentimentos, especialmente a frustração de perceber que familiares e amigos não reagiram com alegria à sua gravidez. No puerpério, a situação se agravou. A ausência de uma rede de apoio tornou o período ainda mais difícil.

“Não tive o apoio do pai do meu filho logo após a alta da maternidade. Enfrentei complicações nos pontos da cesárea, pois tentava manter a rotina da casa e cuidar do bebê sem o devido repouso. Havia dias em que eu chorava no chuveiro, sentindo um vazio profundo”, relata.

Mesmo sobrecarregada, ela conta que costuma ser repreendida sempre que tenta desabafar. Gabriela sente que a sociedade valoriza mulheres que aparentam viver uma realidade perfeita, enquanto ignora a dor de quem demonstra vulnerabilidade.

“Já ouvi comentários como ‘você só reclama’ ou ‘isso é normal’. Isso me deixa muito triste, porque existe uma cultura generalizada que exige das mulheres uma força inabalável. Temos que fingir que está tudo bem no meio do caos”, desabafa.

Para lidar com os sentimentos de solidão e exaustão, Gabriela segue em acompanhamento psicológico, que considera essencial em sua jornada. “Estar presente para acolher e educar é um desafio imenso, mas a terapia tem sido fundamental para trabalhar tudo isso”, afirma.

Quando a exaustão extrema se torna rotina

Foto: Arquivo Pessoal

Para Karla Danielly, consultora de vendas de 27 anos, a maternidade chegou acompanhada de sentimentos difíceis. Diagnosticada com depressão pós-parto, ela precisou de acompanhamento psicológico para lidar com o medo, a exaustão e a sensação de ter perdido a própria identidade.

As dificuldades começaram ainda no momento do parto. Karla enfrentou mais de 12 horas de indução, após completar 41 semanas de gestação sem entrar em trabalho de parto. “Foi muito difícil. Desmaiei, bati a cabeça no chão e só conseguia pedir para que aquela dor parasse”, relembra.

Em casa, os desafios continuaram. Seu filho foi diagnosticado com disquesia, uma dificuldade que impede o bebê de evacuar com facilidade. Sem o apoio do pai da criança, Karla precisou enfrentar a situação sozinha.

“Ele chorava de um lado e eu do outro. Isso foi me adoecendo, até o ponto em que eu já não me reconhecia mais”, conta.

Em um momento de extrema exaustão, ela revela que teve pensamentos suicidas, na tentativa de silenciar a dor que sentia.

Hoje, Karla faz terapia de forma contínua para lidar com as mudanças impostas pela maternidade. Com ajuda psicológica, tem aprendido a enfrentar os sentimentos de medo, cansaço e a ausência de si mesma desde que passou a dedicar quase todo o seu tempo aos cuidados com o filho.

O perigo da romantização da maternidade

Foto: Arquivo Pessoal

A maternidade, ainda hoje, é cercada por idealizações perigosas. Para Flávia Melo, doula e educadora perinatal, muitas mulheres chegam à gestação carregando expectativas irreais, alimentadas por uma sociedade que insiste em perpetuar uma visão romantizada da experiência materna.

“Idealizam que a maternidade é algo instantâneo, mas não é. Dizem que a mãe vai amar o tempo todo, que a amamentação é instintiva e que ela precisa dar conta de tudo. Isso gera sentimentos de culpa e frustração”, afirma Flávia.

Entre mães de primeira viagem, a exaustão física costuma evoluir para um cansaço mental profundo. É comum que elas se comparem a outras mulheres que passaram por um puerpério aparentemente mais leve. A doula também aponta que as mudanças no corpo durante a gravidez, como o surgimento de estrias, podem ser gatilhos para essa comparação constante.

Como tornar uma maternidade acolhedora possível?

Para construir uma maternidade mais acolhedora, Flávia defende a importância da educação perinatal desde a gestação. Ela ressalta que é essencial conscientizar não apenas sobre o parto, mas também sobre todo o processo do puerpério.

“É fundamental mostrar como essa fase realmente é. Enfatizar que certos sentimentos são comuns e que, se necessário, é preciso pedir ajuda. Também é essencial orientar a rede de apoio da gestante, para que saiba como acolhê-la”, explica.

A psicóloga Anna Carolina reforça que a saúde mental materna impacta diretamente o futuro das crianças e o bem-estar de toda a sociedade. Por isso, ela defende a criação e o fortalecimento de políticas públicas como licença-maternidade adequada, creches públicas de qualidade e redes de atenção em saúde mental voltadas para as mães.

“Quando o cuidado recai apenas sobre a mulher, sem apoio do Estado, da comunidade ou de políticas públicas, o resultado é exaustão, culpa e adoecimento. E isso não é um problema individual — é uma questão estrutural”, conclui.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.