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Violência contra mulheres não é entretenimento: a responsabilidade na escuta de mulheres em situação de violência

Por Bruna Sales

Em um sistema marcado por desigualdades históricas e pela subnotificação das violências de gênero, a escuta de mulheres que denunciam violências deve ser um ato de acolhimento e compromisso ético. Mas, ao mesmo tempo, exige uma responsabilidade técnica e política que vá além da simples adesão automática às narrativas apresentadas.

Ser comprometida com os feminismos no exercício do Direito não significa abdicar do rigor na apuração dos fatos; significa, antes de tudo, proteger a seriedade das instituições de proteção, evitando tanto a revitimização quanto a banalização das garantias que tanto custaram a ser conquistadas.

As lutas contra as violências de gênero historicamente enfrentaram o descrédito, a culpabilização das vítimas e o silêncio imposto pelas estruturas de poder. Desacreditar mulheres é prática antiga e profundamente patriarcal. Contudo, há um desafio que precisa ser nomeado: o risco de transformar a proteção jurídica em um espaço vulnerável a usos estratégicos e indevidos, o que, paradoxalmente, pode minar a confiança social nas políticas públicas de enfrentamento às violências.

Esse debate torna-se ainda mais sensível diante da crescente exposição midiática de casos envolvendo violências contra mulheres. Se, por um lado, a visibilidade pode ser instrumento importante para pressionar as instituições a agir e oferecer proteção, por outro, também abre margem para a criação de palcos de julgamento social, onde as vítimas são permanentemente revitimizadas.

As sociedades, ainda profundamente machistas e misóginas, frequentemente transformam mulheres denunciantes em objetos de escrutínio, dúvida e ataque, reproduzindo cotidianamente práticas de violência simbólica e institucional.

O processo correto para a apuração dos fatos deve se dar nos espaços legítimos: o processo judicial, com todas as garantias do contraditório, da ampla defesa e da escuta qualificada. A espetacularização da dor de mulheres, ainda que venha revestida de uma pretensa proteção, frequentemente agrava o sofrimento, obrigando a reviver a violência e a enfrentar novas formas de exposição pública. A proteção efetiva demanda não apenas acolhimento, mas também respeito à intimidade, à dignidade e ao direito à não revitimização.

Os feminismos jurídicos, comprometidos com a transformação das estruturas opressoras, também devem ser comprometidos com a verdade, com a prudência e com o devido processo legal. Isso não significa retroceder para o ceticismo histórico que silenciou tantas denúncias, mas avançar para práticas que combinem acolhimento e rigor: acolher para proteger e investigar para garantir.

A escuta qualificada, nesse sentido, é ferramenta fundamental. Como ensina Carol Gilligan (2003), compreender as narrativas de mulheres requer sensibilidade para captar nuances, contradições e contextos, sem transformá-las, automaticamente, em “provas” ou “desmentidos”. A escuta feminista não se limita à aceitação acrítica nem se rende à suspeita opressora: ela reconhece a complexidade dos relatos de violências e atua para que a Justiça não se torne mais uma forma de injustiça.

Proteger mulheres é proteger, também, a seriedade dos mecanismos de denúncia e de apuração. Não se trata de descrer das violências — que são estruturais, cotidianas e profundamente naturalizadas —, mas de garantir que a resposta jurídica a elas seja eficiente, justa e fiel à sua função emancipatória.

Ser combativa, nesse cenário, é não se deixar instrumentalizar, seja por interesses masculinos ou femininos que tentem usar as violências de gênero como moeda de troca. É defender que os feminismos jurídicos precisam se manter éticos, fortes e comprometidos com as mulheres — todas as mulheres — sem abrir mão da seriedade que sustenta as políticas de proteção.

O desafio é constante, e o caminho, delicado. Mas é justamente nessa encruzilhada entre acolhimento e rigor, entre visibilidade e proteção, que reside a potência de práticas jurídicas verdadeiramente feministas.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.