A adoção é um ato de amor e responsabilidade assumido por muitas mulheres que desejam formar uma família. No entanto, quando esse processo vem acompanhado de idealizações e expectativas irreais sobre um “filho perfeito”, pode gerar frustração, rejeição e impactos psicológicos profundos — tanto para quem adota quanto, principalmente, para a criança.
Foi o que aconteceu em um caso em Arapiraca, que se desenrolou por dois anos, mas só ganhou repercussão recentemente, após a decisão do julgamento. Um casal que manifestava interesse em adotar uma criança devolveu o menino quatro meses após a conclusão do processo de adoção, alegando que ele, com apenas nove anos na época, era “malcriado” e não havia “se adaptado às regras da casa”.
Adoção também é responsabilidade

Apesar da justificativa sobre a dificuldade de adaptação da criança, a promotora de Justiça Viviane Farias afirma que o contexto da devolução foi ainda mais grave.
“A criança nos trouxe relatos que deram a entender que o casal não aceitava a orientação sexual dele”, conta a promotora.
Para Viviane, o caso evidencia como a adoção, muitas vezes, é atravessada por expectativas irreais que desconsideram a individualidade da criança. Segundo ela, o casal demonstrou não estar preparado para lidar com os desafios da parentalidade adotiva.
“É importante enfatizar que a adoção, ainda que seja um ato de amor, também é um ato de responsabilidade”, reforça.
Em maio deste ano, a Justiça de Alagoas decidiu que os pais adotivos devem pagar R$ 10 mil à criança por danos morais. Após retornar ao Centro de Acolhimento, o menino teve dificuldades para se readaptar. A equipe técnica decidiu transferi-lo para uma nova unidade, onde ele passou a receber acompanhamento psicológico e aguarda por uma nova família.
Impactos emocionais da devolução

Crianças e adolescentes inseridos no sistema de adoção, em sua maioria, vivenciaram situações de negligência e insegurança com suas famílias biológicas. Quando são adotadas, espera-se que possam, finalmente, construir vínculos seguros e estáveis, capazes de ressignificar suas experiências anteriores.
No entanto, quando uma criança é devolvida após o processo de adoção, uma nova ruptura se estabelece. A psicóloga Klyne Thatcher, especialista em crianças e adolescentes, explica que, nesses casos, a criança pode reviver feridas antigas e profundas.
Ela afirma que, ainda que a criança não compreenda racionalmente o ocorrido, pode internalizar a sensação de que não é boa o bastante para ser amada.
De acordo com a psicóloga, os sentimentos gerados pela devolução podem ser imediatos — como tristeza, raiva, vergonha e culpa — mas também evoluir para quadros mais severos a longo prazo, como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e transtorno do apego reativo (TAR).
Segundo a Teoria do Apego, os primeiros vínculos da criança moldam sua percepção sobre si mesma e sobre o mundo.
“Quando esses vínculos são rompidos, a criança pode desenvolver padrões de apego inseguros, tornando-se mais retraída, desconfiada ou agressiva – comportamentos que muitas vezes escondem medo profundo e sentimento de rejeição”, explica Klyne.
Romantização e idealização da adoção
A expectativa de encontrar o “filho ideal” impede muitas famílias de refletirem sobre os desafios reais que envolvem criar uma criança. Especialmente quando essa criança possui uma trajetória de vida marcada por rupturas e traumas, que influenciam diretamente na forma como ela se relaciona com o mundo.
Segundo a promotora Viviane Farias, muitas famílias ainda romantizam a adoção, esquecendo que ela envolve os mesmos desafios da parentalidade biológica.
“É normal que um filho dê trabalho e desobedeça. É importante que os adotantes tenham essa consciência para que não haja a quebra de expectativa”, afirma.
Para a neuropsicóloga infantil Hayanne Lima, quem deseja adotar também precisa estar disposto a conhecer a origem da criança e tudo o que ela viveu até chegar ao sistema de acolhimento. Esse passo é fundamental para ajustar as expectativas ao real comportamento da criança.
Ela também destaca que a ideia do “filho perfeito”, alimentada por muitos adotantes, reforça um sistema racista, capacitista e etarista dentro do processo de adoção brasileiro. A maioria dos interessados prefere crianças com até três anos de idade, pele clara e sem condições de saúde específicas.
Dados e realidade do sistema
De cada 100 crianças adotadas no Brasil, nove têm o processo de adoção desfeito, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também registrou que, das 24.673 crianças e adolescentes adotados em 2019, 2.198 retornaram às instituições de acolhimento.
A maior parte das devoluções acontece ainda no estágio de guarda provisória. Entre os principais fatores de desistência estão a idade da criança, seu comportamento e a falta de preparo emocional das famílias. Também são comuns os casos em que o uso de medicação ou o diagnóstico de deficiências aumentam as chances de devolução.
“Crianças que não estão dentro desse perfil acabam ficando mais tempo nas casas de acolhimento e, quando finalmente são adotadas, trazem uma bagagem emocional maior”, afirma Hayanne.
É possível reconstruir os vínculos?

A devolução pode abalar a confiança da criança em construir novos laços afetivos. Mas, segundo especialistas, é possível reconstruir esses vínculos com apoio psicológico e acolhimento.
Para Hayanne Lima, o processo de adaptação tende a ser mais desafiador na adoção de crianças mais velhas. Por isso, os adotantes precisam estar emocionalmente preparados.
Ela ressalta que o acompanhamento psicológico deve envolver não só a criança, mas todos os membros da família.
“É um processo que exige acolhimento e disposição para compreender as vivências e os traumas que essa criança carrega”, pontua.
A rotina estruturada e o cuidado cotidiano também são fundamentais para essa adaptação.
Segundo a psicóloga Klyne Thatcher, o vínculo pode nascer do cuidado diário, quando há escuta ativa e paciência diante das dificuldades. “Muitas vezes, essa família será a única referência de amor e proteção que a criança terá tido em toda a vida”, diz.
Preparo emocional e estrutura para evitar rompimentos
Para reduzir os casos de devolução, o sistema de adoção precisa realizar avaliações minuciosas das famílias interessadas. É essencial que o histórico e as características da criança sejam apresentados com clareza, para que os adotantes saibam como se preparar.
“Deixar isso claro para os pais e capacitá-los a acolher essas individualidades que vêm da trajetória da criança é essencial para evitar a quebra de expectativa que resulte na devolução”, afirma Hayanne.
Klyne também destaca a importância do preparo emocional prévio dos adotantes.
“É preciso preparar emocionalmente os adultos para entender que educar uma criança não é apenas suprir suas necessidades físicas, mas também reconhecer e cuidar de suas necessidades emocionais”, conclui a psicóloga.