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Negócio ancestral: o artesanato como voz, sustento e poder de mulheres negras em Alagoas

Mulheres negras em Alagoas transformam palha, tecidos e porcelana fria em muito mais do que peças artesanais: moldam liberdade, curam feridas e constroem, com as próprias mãos, um futuro possível. Artesãs resgatam saberes ancestrais e os transformam em negócio, identidade e resistência.

Mais do que um negócio, o artesanato afro é legado e resistência. Cada turbante amarrado, cada palha trançada, cada peça moldada à mão carrega uma história ancestral que atravessa o tempo. E, nesse processo, elas fazem do próprio corpo um instrumento de continuidade, cura e transformação.

“Meu bálsamo, minha cura”

Teresa Cristina da Silva Sales/ Foto: Arquivo Pessoal

Essa herança ganha forma nas mãos de mulheres como Teresa Cristina da Silva Sales. Nascida em Maceió e criada entre tintas, traços e retalhos, Teresa descobriu desde cedo que criar era também se reconhecer. Foi ainda na infância, em uma atividade escolar sobre Zumbi dos Palmares, que teve seu primeiro contato consciente com o artesanato afro. A tarefa de montar uma maquete de aldeia quilombola despertou nela algo que mais tarde viraria vocação: contar histórias negras com as próprias mãos.

Ela relata que sempre teve tendencia a produzir cultura afro. Ouça a seguir:

Ao longo dos anos, ela transformou esse impulso em ofício. Com técnicas autorais e intuição aguçada, Teresa modela bijuterias únicas com porcelana fria. Cada peça carrega um gesto de fé, uma memória, uma homenagem. “Eu acordo e desenho para não esquecer. Depois moldo com calma. É um processo espiritual. Tem coisa que vem do coração”, conta.

Teresa Cristina da Silva Sales/ Foto: Arquivo Pessoal

Teresa define sua arte como um encontro entre fé, ancestralidade e terapia. Suas criações, as bijuterias moldadas à mão em porcelana fria, homenageiam orixás, celebram grafismos africanos e evocam a religiosidade afro-brasileira. São peças únicas, carregadas de memória e emoção.

“Quando alguém compra uma peça minha e diz que sentiu algo especial, eu sei que estou no caminho certo. Isso me fortalece”, diz à Eufêmea.

Mas o caminho da criação também exigiu enfrentamento. Embora acolhida em feiras afrocentradas, Teresa ainda lida com olhares atravessados em outros espaços. “Fora dos eventos afros, as pessoas olham com estranhamento. Já ouvi gente dizer que era muito diferente e não no bom sentido.”

Arte: Rebecca Moura

Para manter sua produção ativa, ela recorre às redes sociais, participa de feiras, aceita convites para exposições e testa novos formatos de divulgação. O sonho é claro: viver exclusivamente da sua arte. “Quero minha independência financeira com aquilo que me conecta com minha história. Meu trabalho é meu bálsamo, minha cura.”

Entre fé, intuição e ancestralidade

Durante a pandemia, isolada e sem feiras para expor, mergulhou em um processo criativo intenso. Foi quando desenvolveu sua linha autoral de bijuterias moldadas à mão com porcelana fria, inspiradas na religiosidade afro-brasileira. Cada peça carrega espiritualidade, memória e propósito.

“Quando faço uma bijuteria inspirada em um orixá, não é só um colar. É um elo com uma história que nos foi negada. É uma afirmação.”

Suas peças autorais carregam simbolismo, identidade e sentimento. “É o que me revigora, me preenche”, diz. Hoje, ela sonha em viver exclusivamente da própria arte. “Quero que minha criação seja meu sustento e também uma forma de fortalecer a autoestima de outras mulheres negras.”

Do brejo ao mercado

A vida de Ana Lúcia, moradora de Feliz Deserto, em Alagoas, mudou com um convite despretensioso. Em 1994, desempregada e sem perspectiva, aceitou participar de um curso sobre artesanato com palha de taboa, sem sequer saber o que era a planta. “Fui pela curiosidade. Aprendi, gostei, e nunca mais larguei”, conta.

Ana Lúcia/ Foto: Arquivo Pessoal

Desde então, ela transformou os brejos alagoanos em fonte de sustento e criação. O trabalho começa na lama, entre vegetação densa e áreas de difícil acesso. A taboa é colhida, lavada, seca ao sol por uma semana, trançada e costurada com a própria fibra sem nenhum material sintético. De suas mãos saem bolsas, chapéus, acessórios e objetos de decoração. “É um processo artesanal de verdade. Cada peça carrega um pedaço da nossa cultura.”

Mais do que o esforço físico, Ana Lúcia enfrenta o preconceito contra o fazer manual e o lugar social que ele ocupa.

“Tem quem ache que artesanato é coisa de quem não tem o que fazer. Que mexer com lama é feio. Mas ali tem saber ancestral, tem herança.”

O apoio do Sebrae foi decisivo para que ela enxergasse esse valor. Com capacitação e incentivo, passou a participar de feiras fora do estado, conhecer novos mercados e fortalecer sua identidade como artesã. “Uma vez, numa palestra, a consultora Mirna disse que a gente tinha nas mãos uma riqueza. Nunca esqueci. Quando fechei minha primeira grande encomenda, chorei lembrando dela.”

Arte: Rebecca Moura

Agora, Ana Lúcia sonha alto: quer levar a taboa para o mundo e inspirar outras mulheres a aprenderem o ofício. “Quero que conheçam o que temos aqui em Alagoas. Que vejam nossa força, nossa beleza. Meu maior desejo é que isso não morra comigo.”

O turbante como coroa

Tereza Olegário/ Foto: Arquivo Pessoal

Nascida em Maceió, mas criada na Rocinha, no Rio de Janeiro, Tereza Olegário cresceu entre mulheres fortes, criativas e resilientes. Foi educada por avó e tia, com quem aprendeu que afeto, luta e trabalho manual sempre estiveram entrelaçados. Ao retornar a Alagoas na adolescência, descobriu no processo de transição capilar uma nova forma de se ver e de empreender.

“Quando parei de alisar o cabelo, fui buscar formas de me sentir bem comigo mesma. Comecei a fazer turbantes com retalhos. As pessoas perguntavam onde eu comprava, e aí tive o estalo: por que não criar minha própria marca?”

Assim nasceu a Olegário Turbantes. O que começou com vendas pontuais entre amigas se transformou em uma marca reconhecida por unir estética, ancestralidade e propósito. Hoje, Tereza participa de feiras, ministra oficinas em escolas e desenvolve ações sociais voltadas ao empoderamento feminino.

Arte: Rebecca Moura

Entre as experiências mais marcantes está a primeira oficina com crianças em uma escola pública. “Ver meninas e meninos usando turbantes pela primeira vez foi emocionante. Depois, a professora contou que um aluno nunca mais tirou o dele. Ali eu percebi que estava no caminho certo.”

Autodidata, Tereza pesquisa figuras históricas como Dandara dos Palmares e Tereza de Benguela, que inspiram suas criações e sua atuação. “Elas são minhas guias. Meu trabalho é inspirado nessa ancestralidade de luta.”

Conquistas que costuram autoestima

Sua marca foi premiada em um concurso do TikTok, o que permitiu a compra de uma máquina de costura industrial e um overlock. “Costurava na máquina da minha avó, que mal dava conta. Hoje, minhas peças têm acabamento profissional.”

Tereza Olegário/ Foto: Arquivo Pessoal

Um de seus maiores orgulhos foi vestir a primeira-dama de Maceió com uma saia envelope. “Eu, uma mulher preta, de bairro periférico, vestindo uma figura pública. É a prova de que a gente pode chegar onde quiser.”

O sonho agora é que outras mulheres negras também se vejam com orgulho. “Se a gente soubesse o quanto somos poderosas, ninguém nos segurava. Quero empoderar do mesmo jeito que fui empoderada.”

Do reconhecimento ao mercado: o papel do Sebrae

Marina Gatto/ Foto: Assessoria

Ao acompanhar as trajetórias de Teresa, Ana e Tereza, torna-se evidente a importância de políticas públicas que estimulam o empreendedorismo comunitário com recorte de raça, gênero e território. Em Alagoas, o Sebrae tem sido ponte entre tradição e mercado, especialmente para mulheres negras artesãs.

“O que a gente faz é mostrar que o saber ancestral tem valor econômico. Não é só lembrança de família. É renda, é negócio, é poder”, afirma Marina Gatto, gestora do Programa de Artesanato do Sebrae Alagoas.

O foco do programa está no artesanato tradicional, aquele passado de geração em geração: rendas, bordados, cerâmica, fibras vegetais, madeira: heranças que ganham força e valor ao serem reconhecidas como profissão.

(Veja no vídeo abaixo a importância do Programa de Artesanato do Sebrae Alagoas)

Mas o apoio vai além das oficinas técnicas. “Levamos essas mulheres para feiras nacionais, promovemos rodadas de negócios, criamos identidade visual, ajudamos a melhorar o posicionamento de marca. Queremos que elas se vejam como empresárias, com potencial para ocupar novos mercados”, explica Marina.

Mais de 70% do público atendido pelo programa é formado por mulheres, muitas delas negras, moradoras de zonas rurais ou comunidades periféricas. “Nosso compromisso é garantir que essas mulheres permaneçam em seus territórios, mantendo vivas suas tradições e gerando renda de forma digna.”

O artesanato em Alagoas é mais do que economia criativa: é resistência histórica. “As comunidades quilombolas sempre produziram tudo com as mãos: panelas de barro, colheres de madeira, utensílios domésticos. Esse saber foi sendo passado. E é isso que ainda vemos nas feiras hoje.”

Segundo Marina, o desafio é equilibrar valorização cultural com inserção econômica. “O mercado é importante, mas antes vem o reconhecimento. Essas mulheres não são apenas artesãs, são guardiãs de um modo de vida. Se a gente não incentiva, essa cultura desaparece.”

Panorama do afroempreendedorismo em Alagoas

Os dados ajudam a dimensionar o contexto no qual essas mulheres empreendem. Um mapeamento da Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) mostra que 32% dos afroempreendedores de Maceió atuam no setor de arte e cultura, que inclui diretamente o artesanato. Outros 23% estão na moda, e 12% na alimentação.

Gráfico: Rebecca Moura

O estudo aponta ainda que 41% dos afroempreendedores permanecem na informalidade. Apenas 59% estão formalizados, o que evidencia tanto a força produtiva quanto as barreiras de acesso enfrentadas por pessoas negras, especialmente mulheres, em relação a crédito, políticas públicas e redes de apoio.

Uma pesquisa específica do Sebrae, Estado da Arte do Artesanato Alagoano (2020), mostra que a atividade é majoritariamente feminina, com maior concentração entre os 30 e 59 anos. Apesar disso, só 30% dos artesãos têm no ofício sua principal fonte de renda.

Arte: Rebecca Moura

Segundo Marina Gatto, Alagoas conta com cerca de 18 mil artesãos formalizados por meio da Carteira Nacional do Artesão. Nos últimos dez anos, o setor movimentou aproximadamente R$ 25 milhões no estado, consolidando-se como pilar da economia criativa e modelo de valorização da arte popular.

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.