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Quando a quadrilha vira denúncia: a arte popular contra a violência de gênero e o direito que precisa escutar

Por Bruna Sales

Crédito da foto: Arquivo Pessoal

Quando soube que uma quadrilha junina havia escolhido como enredo a violência contra a mulher, confesso que minha primeira reação foi de cautela. Temi que a dor feminina fosse transformada em caricatura, como se a encenação teatral bastasse para dar conta de uma realidade tão brutal e complexa. Mas, ao assistir ao espetáculo da quadrilha Amanhecer no Sertão, percebi que estava diante de algo maior: uma verdadeira ruptura simbólica com o casamento matuto machista e com as representações romantizadas da submissão feminina nas festas populares.

A quadrilha Amanhecer no Sertão, vencedora do concurso Forró e Folia 2025, não apenas denunciou a violência. Ela desnaturalizou relações de poder, colocou a autonomia feminina no centro do enredo e provocou o público a sair do papel de espectador passivo para ocupar um lugar de reflexão ativa e emocionante.

Foi uma experiência de leitura de mundo no sentido mais freiriano do termo. Como nos lembra Paulo Freire, “ler o mundo precede a leitura da palavra”. E ali, o que se lia com o corpo, com a música e com a dança era um grito por justiça.

Sim, esse tipo de intervenção artística contribui profundamente para a conscientização. Primeiro, porque rompe o tabu do não dito: colocar a violência em cena quebra o ciclo de silenciamento e permite que outras mulheres se reconheçam, se identifiquem e busquem ajuda. Depois, porque humaniza o debate: envolve emoção, corporeidade, cultura local. Toca onde o jurídico e o acadêmico nem sempre alcançam — no sentir. E, talvez o mais potente, amplifica vozes populares: mostra que a política pode vir do povo, que a resistência pode dançar quadrilha e que a educação em direitos não precisa usar toga nem paletó.

Mas é preciso reconhecer com responsabilidade: existe, sim, o risco de banalização da violência quando ela é constantemente encenada e esse risco vai muito além da arte popular ou das quadrilhas juninas. Ele se manifesta toda vez que a dor alheia é transformada em palanque, palco ou produto de consumo rápido, especialmente nas redes sociais, sem o devido cuidado com a vítima, com os direitos envolvidos e com os processos éticos que a temática exige.

Quando a violência contra a mulher vira pauta midiática apenas para gerar engajamento, chocar ou impulsionar a visibilidade de quem fala, ocorre um deslocamento perigoso: o foco deixa de ser a vítima e passa a ser quem se apropria da dor. Isso se aplica à arte, ao jornalismo, ao ativismo e até mesmo a determinadas instituições.

A denúncia, quando feita sem escuta, sem contexto e sem compromisso real com o enfrentamento, corre o risco de espetacularizar o sofrimento e, ainda pior, silenciar as vítimas. A dor vira performance, e não processo de transformação.

Como mulher, advogada e pesquisadora que atua cotidianamente ao lado de vítimas, é profundamente incômodo — e eticamente inadmissível — ver a dor feminina sendo instrumentalizada para autopromoção ou engajamento superficial, sobretudo quando não há qualquer ação concreta de apoio, acolhimento, reparação ou mudança estrutural por parte de quem denuncia.

A arte pode e deve ser ferramenta de transformação. Mas, para isso, precisa estar a serviço da escuta, da consciência crítica e da justiça social. Caso contrário, o que era para ser libertador se transforma em uma nova forma de opressão simbólica: travestida de empatia, mas vazia de compromisso.

Como dizia Paulo Freire, “a denúncia da injustiça deve vir acompanhada do anúncio de uma possibilidade de mudança”. Denunciar, sim, mas com responsabilidade, ética e ação concreta.

É por isso que o Direito e as políticas públicas precisam, urgentemente, se aproximar desses espaços culturais que já atuam como mecanismos informais de educação, acolhimento e resistência. Em vez de impor saberes, é hora de escutar o que já se produz nos territórios. É hora de criar editais com recorte de gênero e cultura, de formar redes entre profissionais do Direito e agentes culturais, de reconhecer formalmente as quadrilhas, os terreiros, os grupos de arte popular como espaços de promoção de direitos.

O Direito que se nega a escutar a cultura é um Direito que fala sozinho. E quem fala sozinho, em geral, não transforma nada.

Que a quadrilha Amanhecer no Sertão tenha, de fato, aberto portas para um novo tempo. Um novo amanhecer. Onde o chão do terreiro também seja palco de justiça, e onde a sanfona toque em sintonia com os direitos humanos.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.