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“Busquei cada pista como se fosse ouro”: alagoana resgata a história de Almerinda Farias Gama e a transforma em livro

Crédito da foto: Mariana Leal

Silenciada pelos livros de História, Almerinda Gama, mulher negra, alagoana e uma das pioneiras do movimento sufragista no Brasil, ganha agora um resgate necessário. Após anos de pesquisa, a jornalista Cibele Tenório, também alagoana, mestra e doutoranda em História, atualmente radicada em Brasília, transforma esse apagamento em reparação ao lançar um livro que busca democratizar o legado dessa figura emblemática.

Antes do ‘encontro’ com Almerinda

Os livros sempre estiveram presentes na vida de Cibele. Nascida no bairro do Feitosa, em Maceió, ela foi criada em uma família que, mesmo com recursos limitados, incentivou desde cedo sua curiosidade e formação intelectual por meio da leitura.

Foi por meio das crônicas de autores como Luis Fernando Veríssimo e Fernando Sabino que Cibele descobriu o gosto pela escrita e passou a se expressar através das palavras. Durante as leituras, percebeu que muitos dos escritores que admirava também eram jornalistas e foi aí que enxergou um possível caminho profissional.

“Cresci cercada por livros e acho que isso influenciou diretamente a escolha da minha profissão. Foi natural que eu quisesse ir para o jornalismo, mesmo sem ter ideia exatamente do que era naquela época”, relembra à Eufêmea.

Hoje, formada e com anos de experiência na área, Cibele reflete como a maioria das coleções que lia na infância era composta por autores homens. Essa ausência de representatividade foi o que acendeu, anos depois, o desejo de resgatar a trajetória de uma mulher cuja história e luta foram apagadas ao longo do tempo.

O encontro da virada de chave

Antes de mergulhar na história de Almerinda Gama, Cibele atuou como jornalista e gestora de redes sociais para políticos em Maceió e, depois, em Brasília, onde vive atualmente. Era um período em que as plataformas digitais ainda engatinhavam, e sua carreira estava voltada para o futuro para as tecnologias, os algoritmos, os novos formatos de comunicação.

Mas foi em 2015, durante uma oficina de audiovisual no Rio de Janeiro, que seus olhos se voltaram, pela primeira vez, para o passado. A proposta era simples: cada participante deveria produzir um curta-metragem com base no acervo do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil (CPDoc). Em busca de referências femininas — que equilibrassem o repertório masculino que consumiu durante a infância — Cibele se deparou com um nome que a fez parar.

“Estava olhando por ordem alfabética e, na letra ‘A’, apareceu o nome Almerinda Farias Gama. Na ficha, dizia que ela tinha sido jornalista, liderança do movimento de mulheres nos anos 30 e alagoana”, conta.

Apesar das coincidências, Cibele nunca tinha ouvido falar naquela mulher. Uma jornalista, feminista e nordestina, apagada pela história oficial. Intrigada, ela continuou vasculhando o acervo e encontrou uma entrevista e algumas fotografias.

Era pouco, mas era suficiente para dar o primeiro passo: transformou aquelas poucas pistas no curta-metragem “Almerinda, A Luta Continua”, que resgata a memória de uma das primeiras militantes feministas do país.

“Alagoas celebra seus marechais, mas pouco se fala das mulheres que ajudaram a transformar a história do estado”, afirma.

A escassez de informações, no entanto, provocou ainda mais inquietação. Almerinda era um nome de verbete, um parágrafo solto nos arquivos. “Eu precisei montar um quebra-cabeça”, conta Cibele. E foi esse incômodo que a levou a ingressar no mestrado em História, com o objetivo de reconstruir, peça por peça, a trajetória dessa mulher esquecida.

“Busquei cada pista como se fosse ouro”

A escassez de fontes sobre Almerinda Gama foi um dos maiores desafios enfrentados por Cibele ao iniciar sua dissertação de mestrado. As poucas informações disponíveis estavam concentradas em uma rara entrevista concedida por Almerinda em 1984, na qual ela relatava ter nascido em 1899 e ter integrado a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Cibele passou horas em acervos, arquivos públicos e cartórios, vasculhando pistas e fragmentos sobre a vida de uma mulher que, apesar de sua atuação política e social, foi completamente esquecida pela historiografia oficial.

“As fontes são desorganizadas e escassas, até porque Almerinda, como tantas outras mulheres e pessoas negras que não pertenciam aos círculos hegemônicos de poder, foram — e ainda são — vistas como quem não tem muito a dizer”, observa Cibele.

Ela também destaca que o fato de Almerinda ter sido uma mulher negra, que sempre precisou trabalhar para sobreviver, pode ter influenciado na ausência de registros. “Possivelmente não havia espaço na rotina dela para escrever sobre si mesma, embora eu acredite que ela tivesse plena consciência do seu papel dentro do movimento”, diz.

O esforço para reunir documentos e montar essa trajetória virou um verdadeiro trabalho de garimpo. “Enquanto outros biógrafos escolhem o que colocar, eu precisei buscar cada pista como se fosse ouro”, relembra.

Do mestrado ao livro

Foto: Cortesia à Eufêmea

Em 2023, a dissertação de mestrado de Cibele recebeu o 3º Prêmio Todavia de Não Ficção, o que possibilitou a transformação do texto acadêmico em livro. Para o novo formato, a jornalista adaptou o conteúdo para uma linguagem mais acessível, com o objetivo de alcançar mais pessoas e democratizar a história de Almerinda.

A proposta do livro é clara: tornar públicos os ideais, as convicções e as realizações de uma mulher que foi peça-chave no movimento sufragista brasileiro, mas que permaneceu apagada da memória coletiva.

Assim, dez anos após o primeiro contato com sua história, Cibele lança, em 2025, a biografia “Almerinda Gama: Sufragista Negra”. A obra não apenas resgata sua trajetória como militante, mas também revela outros aspectos de sua vida como mulher, trabalhadora, líder e referência.

“O livro é para que mais pessoas conheçam a história de Almerinda: uma história silenciosa, mas poderosa”, afirma Cibele.

Um reencontro com a ancestralidade

Reunir fragmentos, cruzar documentos e reconstruir a trajetória de uma das primeiras sufragistas brasileiras foi, para Cibele, mais do que um trabalho acadêmico. Foi um reencontro com a própria ancestralidade. Durante o processo de pesquisa, ela reconheceu semelhanças entre Almerinda e as mulheres da sua própria família, especialmente sua mãe, uma datilógrafa negra que ela perdeu ainda aos 14 anos.

Assim como Almerinda, sua mãe também precisou trabalhar desde cedo e enfrentou todas as marcas da pós-abolição. “É curioso isso, porque acho que, de alguma forma, ao contar essa história, eu estou contando um pouco da história da minha mãe também”, diz.

Sua dissertação — agora transformada em livro — tornou-se um gesto de reparação às mulheres negras que sempre estiveram presentes na construção do Brasil, mas que foram silenciadas por quem detém o poder de narrar. Para Cibele, resgatar essas memórias é uma forma de honrar as antepassadas e, ao mesmo tempo, de revelar às gerações atuais as estratégias de resistência que essas mulheres construíram para sobreviver e lutar.

Almerinda Gama faleceu em 1999, aos 99 anos, sem receber qualquer reconhecimento por sua trajetória. A data de sua morte só veio à tona graças à pesquisa de Cibele, que localizou sua certidão de óbito após uma longa busca.

“A gente trabalha para que não seja mais assim. Para honrar o legado das nossas mais velhas, das que vieram antes de nós e abriram caminhos, pavimentaram a estrada para que hoje a gente pudesse estar aqui.”

Quem foi Almerinda Gama?

Almerinda votando. Foto: Internet

Nascida em Maceió, em 1899, Almerinda Farias Gama foi advogada, jornalista, sindicalista, poetisa e política brasileira. Em 1929, após descobrir que um colega homem ganhava mais do que ela para exercer a mesma função, mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades.

Na capital fluminense, tornou-se presidenta do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos e também Secretária do então Distrito Federal. Mais tarde, liderou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e se destacou como uma das principais figuras na luta pelo direito ao voto feminino no Brasil.

Almerinda morreu em São Paulo, em 1999, invisibilizada pela história oficial. Apenas em 2016, seu nome passou a ganhar algum reconhecimento público, com a criação do Prêmio Almerinda de Farias Gama, instituído pela Prefeitura de São Paulo, para valorizar iniciativas de comunicação voltadas à defesa das mulheres negras.

Em Maceió, a Lei nº 22/2024 institui o dia 16 de maio como o Dia Municipal de Almerinda Farias Gama. A lei foi de autoria da vereadora Olívia Tenório, em parceria com Arísia Barros, ex-coordenadora de Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Secretaria Municipal da Mulher, Pessoas com Deficiência, Idosos e Cidadania.

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