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“Falar sobre morte não atrai a morte”: por que precisamos entender os cuidados paliativos

Foto: Reprodução/Internet

No Brasil, ainda há pouca compreensão sobre o que realmente são os cuidados paliativos. Para muita gente, o termo ainda soa como sinônimo de abandono terapêutico ou de “fim da linha”. Mas, na prática, trata-se de uma abordagem ativa, centrada no cuidado, na dignidade, no conforto e na autonomia até o último dia de vida.

Essa distância entre o senso comum e a prática profissional se reflete nos dados. De acordo com ranking global publicado pelo Journal of Pain and Symptom Management em 2022, o Brasil ocupa a 79ª posição entre 81 países avaliados quanto à qualidade da morte e à oferta de cuidados paliativos. O estudo, que ouviu 181 especialistas em todo o mundo, reforça o tamanho do desafio: tornar esse tipo de cuidado acessível e, acima de tudo, compreendido.

Acolher o sofrimento em todas as formas

Foto: Cortesia à Eufêmea

Uma das vozes que atuam diretamente na transformação desse cenário é a da psicóloga paliativista e psicoterapeuta do luto Talia Oliveira. Em entrevista à Eufêmea, ela defende a importância de ampliar o entendimento sobre o que realmente são os cuidados paliativos.

“É muito comum que as pessoas associem os cuidados paliativos apenas aos momentos finais da vida, mas isso não traduz o que, de fato, eles representam. O ideal é que estejam presentes desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida.”

Segundo Talia, o foco desse tipo de cuidado é aliviar o sofrimento em todas as suas dimensões, física, emocional, social e espiritual. Para ela, cuidar não é sobre adiar a morte nem antecipá-la, mas sim garantir vida até o fim, com sentido e autonomia.

A psicóloga também chama atenção para o peso emocional das palavras. “Quando alguém ouve ‘cuidados paliativos’, quase sempre vem o medo: medo de morrer, de sofrer, de perder a autonomia, de ser um peso. O papel da psicologia é acolher tudo isso.”

“Cuidamos de quem cuida”

Talia também reforça que a doença não afeta apenas quem está em tratamento, mas atinge toda a família e isso exige atenção. “Cuidamos de quem cuida, porque ninguém cuida de alguém sozinho sem também precisar de cuidado”, afirma.

Uma das barreiras mais graves, segundo ela, é estrutural. Apesar do lançamento da Política Nacional de Cuidados Paliativos em 2024, a aplicação ainda é falha. “Falta formação, acesso, serviços especializados. Muitos profissionais sequer sabem o que são cuidados paliativos.”

Sobre sua atuação, Talia acredita que a psicologia tem o papel de abrir espaços onde antes havia apenas silêncio. Para ela, falar sobre finitude é, essencialmente, falar sobre a vida e esse processo começa no próprio profissional.

“Se quem cuida não estiver preparado para escutar sobre a morte, dificilmente conseguirá oferecer um espaço verdadeiro de cuidado”, reforça.

Cuidado de quem parte e de quem fica

Foto: Cortesia à Eufêmea

Quem também atua nessa linha de escuta e acolhimento é Aline Neves, psicóloga paliativista e coordenadora do Serviço de Psicologia do Complexo de Saúde São João de Deus. Para ela, desmistificar o conceito é o primeiro passo.

“Cuidado paliativo não significa fim de vida, abandono ou desistência do paciente. É coexistir com os tratamentos e oferecer suporte integral.”

Aline explica que o sofrimento pode surgir já no momento do diagnóstico, que representa uma ruptura na rotina da vida. Essas mudanças tendem a provocar ansiedade, medo, insônia e sensação de perda de controle. Por isso, a comunicação, nesse contexto, precisa ir além da informação clínica: é preciso escutar com presença e sensibilidade.

Ela reforça a importância da escuta qualificada, da comunicação compassiva e da compreensão do luto antecipatório. “Cuidar é reconhecer as perdas antes da morte e preparar, junto à família, esse momento.”

Aline relembra um caso marcante: uma paciente jovem, com câncer agressivo, desejava ver o filho de 5 anos enquanto estava internada. A visita foi cuidadosamente planejada. “Foi um momento profundamente humano. O menino desenhou, ela colou o desenho na parede. Depois da visita, ela me disse: ‘Foi o momento mais especial da minha vida’. Dois dias depois, faleceu.”

“Estar ao lado é um ato de amor. Mesmo quando não é possível evitar a morte, é possível evitar que ela aconteça com sofrimento”, afirma.

Além da dor física, o combate ao sofrimento humano

A médica clínica e paliativista Lauren Provin explica que cuidados paliativos não são sinônimo de fim de linha, mas uma abordagem ativa que pode ser iniciada em qualquer fase da doença. “Não é sobre esperar a morte, mas sobre viver melhor.”

Ela defende o conceito de cuidado integral. “A dor física é só a ponta do iceberg. Cuidamos também do sofrimento emocional, social, espiritual e existencial. O foco é sempre a pessoa, não apenas a doença.”

Lauren também critica a ideia de que cuidados paliativos representam desistência. “A luta pela vida também é uma luta por dignidade. Cuidar é um dever ético, mesmo quando não há mais cura.”

Sobre acesso, ela lembra que o SUS já oferece serviços paliativos, como o programa Melhor em Casa, ambulatórios e leitos específicos. Mas reconhece que a cobertura ainda é desigual.

“Falar de morte não atrai a morte. O que precisamos temer é uma vida mal vivida. O cuidado paliativo traz o foco de volta para o que importa: o ser humano.”

Morrer com dignidade também é um direito

Foto: Cortesia à Eufêmea

Essa mudança de paradigma também é defendida por Marília Magalhães, médica de família com especialização em cuidados paliativos e psiquiatria. Para ela, os cuidados paliativos representam uma virada necessária na forma como compreendemos a medicina.

“Fomos ensinados a combater a morte a qualquer custo. Mas cuidar também é reconhecer a finitude e garantir dignidade até o fim.”

Marília destaca que os cuidados paliativos não se limitam ao tratamento do câncer. “Pacientes com doenças degenerativas, insuficiências crônicas ou condições genéticas também se beneficiam. O foco é a experiência de viver com a doença, não a doença em si.”

Ela reforça que quanto mais cedo esse cuidado é iniciado, melhores são os resultados — tanto para o paciente quanto para a família. “Saúde mental também é um pilar. É preciso escutar, com empatia, quem sente que está perdendo o sentido da vida.”

Em Alagoas, segundo a médica, ainda há poucos serviços estruturados. Ela cita como referência o trabalho do Hospital Universitário e do Hospital Helvio Auto, ambos em Maceió, mas reconhece que são exceções.

“Aceitar o cuidado paliativo não é desistir. É optar por um caminho mais humano com verdade, sem ilusões, mas com muito afeto. O cuidado paliativo é um convite à escuta, ao vínculo, à compaixão. E morrer bem também é um direito”, conclui.

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.