Por Anne Caroline Fidelis e Bruna Sales
Tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo nº 89/2023, que pretende sustar os efeitos da Resolução nº 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal resolução institui o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, um marco normativo que orienta a atuação do Judiciário na promoção da igualdade substantiva, reconhecendo as assimetrias de poder que atravessam as vidas de mulheres, meninas e outras pessoas em situação de vulnerabilidade.
A justificativa do PDL — suposta invasão de competência do CNJ — mascara o verdadeiro problema: a resistência institucional a reconhecer o gênero como um fator estruturante da desigualdade e da violência nos processos judiciais. O Protocolo não é um ativismo ideológico: é o cumprimento de compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.
Uma justiça que enxerga gênero é uma justiça mais justa
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi originalmente lançado pelo CNJ em 2021, com base em compromissos internacionais como a Convenção de Belém do Pará (1994) e a CEDAW – Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ambas ratificadas pelo Brasil. A versão atualizada e vinculante, aprovada pela Resolução nº 492/2023, determina que magistradas e magistrados observem elementos de gênero ao julgar casos, com atenção especial a estereótipos, desigualdade estrutural e vulnerabilidades múltiplas.
Trata-se de instrumento normativo técnico, elaborado com respaldo da Recomendação Geral nº 33 do Comitê CEDAW, que orienta os Estados-membros a garantir o acesso igualitário à justiça por meio de adaptações institucionais e capacitações contínuas. Além disso, a Recomendação nº 128 do Fórum Permanente de Juízes e Juízas da América Latina sobre Justiça com Perspectiva de Gênero (2020) reforça a urgência da adoção de protocolos como este.
A proteção judicial com perspectiva de gênero é também um desdobramento direto dos artigos 1º, III; 3º, IV; e 5º, I da Constituição Federal, que asseguram a dignidade humana, os objetivos de construção de uma sociedade livre de preconceito e a igualdade perante a lei. Mais que direito, trata-se de dever institucional.
O PDL nº 89/2023 é um retrocesso travestido de legalidade
O argumento central do PDL 89/2023 é de que o CNJ teria exorbitado seu poder regulamentar ao transformar o protocolo em resolução obrigatória. Contudo, conforme o artigo 103-B da Constituição Federal, o CNJ possui competência expressa para controlar a atuação administrativa e disciplinar do Judiciário e, portanto, pode estabelecer diretrizes para uma atuação institucional mais efetiva e igualitária.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em diversas ocasiões, a validade de resoluções do CNJ com efeitos normativos. Como destacou a Ministra Cármen Lúcia, “a justiça que não enxerga as desigualdades não é cega: é conivente”.
Gênero no Judiciário não é “modismo”: é reparação histórica
Mulheres negras, indígenas, pobres, mães solo, mulheres com deficiência, mulheres trans: todas enfrentam, em diferentes níveis, um padrão de invisibilidade ou revitimização dentro dos tribunais. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero serve como ferramenta para romper esse ciclo.
A manutenção da Resolução nº 492/2023 também é recomendada por organismos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que destacou em relatório recente (CIDH, 2022) que a ausência de perspectiva de gênero na atuação judicial gera impunidade, perpetua a violência e contribui para a descrença no sistema de justiça.
Direito é lugar de disputa — e o lado da justiça deve ser o da equidade
Sustar o protocolo é recusar o direito das mulheres a um julgamento justo. É ignorar a construção teórica e prática que reconhece que a neutralidade absoluta é um mito — e que o Judiciário, enquanto espaço de poder, precisa ser atravessado pela crítica de gênero.
Mais do que nunca, é tempo de reafirmar o compromisso com uma justiça democrática, inclusiva e transformadora. A tentativa de barrar a Resolução nº 492/2023 pelo PDL nº 89/2023 é uma tentativa de manter estruturas arcaicas e opressoras. A resposta deve ser clara: nenhum direito a menos, nenhuma mulher a menos.
Referências (ABNT):
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 492, de 17 de outubro de 2023. Institui o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 3 jul. 2025.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Decreto Legislativo nº 89/2023. Sustação da Resolução CNJ nº 492/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 3 jul. 2025.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Adotada em 9 de junho de 1994. Disponível em: https://www.oas.org. Acesso em: 3 jul. 2025.
NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), 1979. Disponível em: https://www.ohchr.org. Acesso em: 3 jul. 2025.
COMITÊ PARA A ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER. Recomendação Geral nº 33: Acesso das mulheres à justiça. 2015. Disponível em: https://www.ohchr.org. Acesso em: 3 jul. 2025.
CIDH – COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre acesso à justiça e perspectiva de gênero nas Américas. Washington, D.C., 2022.
FÓRUM PERMANENTE DE JUÍZES E JUÍZAS DA AMÉRICA LATINA. Recomendação nº 128, sobre a aplicação da justiça com perspectiva de gênero. 2020.