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Mais de sessenta socos

Por Anne Caroline Fidelis

Foto: Igor Eduardo Pereira Cabral/Reprodução Instagram

Mais de sessenta socos. Um atrás do outro. Mais de sessenta tentativas de calar uma mulher. Foi assim que Juliana Garcia quase perdeu a vida no último sábado, em Natal (RN), vítima da fúria covarde de Igor Eduardo Pereira Cabral, ex-jogador da seleção brasileira de basquete 3×3. Dentro de um elevador, em um condomínio de classe média, a violência se repetiu como um martelo: mais de sessenta golpes, nenhum pedido de socorro atendido, até que um porteiro decidiu fazer aquilo que tantas vezes dizem para a gente não fazer — meter a colher.

E foi isso que salvou Juliana. A chamada para a polícia impediu que a história virasse estatística. Porque se ninguém tivesse interferido, estaríamos aqui escrevendo sobre mais um feminicídio. A tentativa já existiu — o Código Penal reconhece. Mas mesmo com lei, sem ação, a história poderia ter terminado com a mesma frase que tantas famílias ouvem todos os dias: “ela não resistiu”.

Não é um caso isolado, e é perigoso tratar como se fosse. A cada nova notícia, a cada vídeo vazado, parece que nos esquecemos da raiz desse horror. Não se trata de “perda de cabeça”, não foi “um surto claustrofóbico” — desculpa esfarrapada que o agressor apresentou em juízo. Violência contra mulheres é padrão, é sistema, é poder exercido na intimidade, amparado por séculos de silêncio social. Mais de sessenta socos não surgem do nada: são construídos por uma cultura que, mesmo em 2025, ainda tenta justificar a brutalidade masculina como reação, nunca como crime.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 escancara isso: 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio no ano passado, o maior número já registrado no país. Outras 3.870 sobreviveram a tentativas de feminicídio, enquanto 87.545 mulheres foram estupradas, uma a cada seis minutos. A maior parte das vítimas é jovem, negra, e morta dentro de casa. Esses números não são exceções: são o retrato de um país que ainda considera a violência contra mulheres um problema doméstico, e não uma questão de segurança pública e direitos humanos.

A diferença entre a vida e a morte de Juliana esteve num telefonema. Uma atitude simples, corajosa, que a sociedade insiste em chamar de intromissão, mas que a história prova ser salvação. “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, diz o ditado machista. Pois é exatamente o contrário: é quando alguém mete a colher, chama a polícia, estende a mão, que vidas são poupadas.

Que Igor Eduardo Pereira Cabral seja chamado sempre de agressor, e que o nome Juliana Garcia seja lembrado não pela violência sofrida, mas pelo que ela representa — sobrevivência. E que cada um de nós entenda: não basta leis boas; precisamos de uma cultura que entenda que quem se cala numa cena de violência doméstica escolhe quem pode morrer.

Mais de 60 socos não podem ser normalizados. Eles têm que doer em todos nós. Porque, se não doer, amanhã serão setenta, oitenta, cem — até que não reste ninguém para contar.

📚 Referências
• Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006: define e tipifica a violência doméstica e familiar contra a mulher.
• Lei do Feminicídio, Lei 13.104/2015: altera o Código Penal para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio (art. 121, §2º, VI).
• Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 19ª edição:
• 1.492 feminicídios em 2024 (recorde histórico);
• 3.870 tentativas de feminicídio (+19%);
• 87.545 casos de estupro (uma vítima a cada 6 minutos).
• Catherine MacKinnon, Toward a Feminist Theory of the State: a violência de gênero como instrumento de poder e dominação masculina.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.
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