Tem dias em que a gente lembra exatamente por que escolheu estar onde está. E na semana passada eu tive um dia desses.
A história é antiga — acompanho esse adolescente há quase dois anos. Um ‘menino’ de agora 17 anos, que aprendeu cedo demais a viver por conta própria, a sobreviver sem muitas referências de cuidado. Alguém que, por muito tempo, não soube o que era ser olhado com atenção, escutado com presença, considerado com dignidade.
E é nesse cenário que o vínculo nasce. Como psicóloga da atenção básica, meu trabalho é acompanhar. E acompanhar, às vezes, é muito mais do que sessões semanais ou quinzenais e escutas silenciosas: é lutar pelo acesso, atravessar setores, pedir ajuda, fazer ponte.
Durante algumas das nossas sessões, ele falava do desejo de cuidar do seu sorriso — um sonho que parecia distante: colocar uma prótese, poder sorrir com confiança. Apesar da pouca idade, já havia perdido alguns dentes. Sua dentição, muito comprometida, era só mais um reflexo das ausências que o cercam. Até que, em um certo momento, conseguimos encaixá-lo no atendimento odontológico da própria unidade de saúde.
Mas na semana passada ele chegou triste. Disse que o dentista iria encaminhá-lo para outro local, e isso o abalou. O medo de perder mais um vínculo, de ser deslocado para um lugar novo, era visível. Ele mal sabia explicar direito, mas o corpo dele dizia tudo: insegurança, frustração, quase como se estivesse sendo “largado” de novo.
Decidi ir conversar com o dentista, querendo entender melhor a situação — naquele cenário, eu já me sentia como a única referência de cuidado para aquele adolescente.
Não conhecia muito o dentista, só de vista, pelos corredores. E o que encontrei foi mais do que empatia: encontrei alguém que está na mesma luta que eu. Alguém que compreende que, para muitos dos nossos pacientes, o cuidado precisa ser mais do que técnico — precisa ser humano, contínuo, enraizado na escuta e na permanência.
Ele entendeu. Me explicou os motivos do encaminhamento e, ali, juntos, decidimos recalcular uma rota mais possível para aquele adolescente. Comprometeu-se a mantê-lo sendo acompanhado na unidade, dentro do que fosse viável. E me contou um pouco da sua própria prática, da tentativa diária de fazer o cuidado valer a pena para quem mais precisa.
E aí eu fiquei refletindo o tanto que, às vezes, a gente se sente só nessa prática — cada um na sua sala, no seu ritmo, tentando fazer a diferença no escuro. Mas hoje eu fui relembrada de que não estou só, de que tem gente do meu lado, mesmo quando a gente não se cruza nos prontuários.
Alguns atendimentos nos lembram que o cuidado é mais do que um protocolo. É presença. É insistência. É rede.
E é isso que me emociona: saber que minha presença aqui, nesse território, faz diferença. Saber que ele sabe que eu estou aqui. E, hoje, mais do que nunca, saber que eu não estou sozinha.
O SUS tem seus limites, mas ele também tem suas potências. E uma delas é essa: o encontro de profissionais que acreditam no cuidado como forma de resistência.