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“A vida renasce”: pacientes e famílias relatam o impacto da doação de órgãos em Alagoas

A vida de centenas de alagoanos está em pausa, marcada pela espera de um gesto capaz de transformar destinos: a doação de órgãos. Enquanto o tempo corre como inimigo, histórias permanecem suspensas, à espera de um recomeço. De acordo com o Sistema Nacional de Transplantes, hoje, em Alagoas, 631 pessoas aguardam um transplante, sendo 384 mulheres.

Medo e esperança em um só olhar

Foto: Arquivo Pessoal

Entre esses rostos está o de Débora Fernanda Cordeiro, 34 anos, técnica em gestão universitária pela UPE, que conhece de perto o peso dessa espera. Diagnosticada apenas aos 27 anos com ceratocone, ela passou por anos de incertezas até que, em 2017, encontrou a oftalmologista Ana Gameleira, que a encaminhou para a fila de transplante de córnea. A cirurgia só aconteceu quase três anos depois.

“O meu medo era de que desse errado por algum motivo: perder a oportunidade, sofrer rejeição da córnea. Até pensei que, por estar consciente durante a cirurgia, pudesse, mesmo sem querer, prejudicar o processo”, lembra.

Antes do diagnóstico correto, Débora conviveu com a perda gradual da visão sem respostas dos médicos. O impacto ultrapassou a saúde física. “O ceratocone afetou negativamente a minha vida como mulher. Eu me definia pelas lentes. Sem elas, me sentia inválida perante o mundo.” O uso das lentes, que no início trouxe alívio, logo virou martírio diante da evolução da doença. “Eu dizia: ‘sem minhas lentes não sou nada’. E, a cada dia, essa sensação só piorava”, recorda.

O transplante, que inicialmente gerava medo, acabou se tornando a única saída para Débora. Ela conta que só aceitou entrar na fila graças à insistência de sua médica, a quem hoje credita ter lhe salvado a vida.

A consciência sobre a importância do doador só veio às vésperas da cirurgia. “Me doeu muito, e ainda dói, saber que, para que eu voltasse à vida, alguém precisou partir. Alguém chorou essa perda. Mas também reconheço que essa generosidade me devolveu as rédeas da minha vida.”

Hoje, Débora afirma com convicção que, após o transplante, pôde retomar sua vida e recuperar a autonomia. Para ela, a visão está diretamente ligada à autoestima e à independência, aspectos que sempre considerou fundamentais. “Às que aguardam um transplante de córnea, não percam a fé e a esperança. Mesmo diante do desespero, recomponham-se. Quando menos esperamos, a vida renasce.”

Dois olhos, duas chances de recomeçar

Foto: Arquivo Pessoal

Assim como Débora, Talita Yngrid, 24 anos, também enfrentou o ceratocone, mas, em seu caso, ela precisou passar pelo transplante nos dois olhos para recuperar a visão. O diagnóstico veio aos 13 anos, dentro de uma sala de aula, quando percebeu que estava perdendo a capacidade de enxergar. Desde então, já sabia que um dia teria de enfrentar a cirurgia.

A primeira cirurgia demorou a chegar. Talita esperou seis anos até conseguir o transplante de um dos olhos. Depois, ao trocar de equipe médica, foi chamada rapidamente para o procedimento. Já a espera pelo segundo olho levou mais dois anos. “Foram duas cirurgias iguais, não senti diferença entre elas”, recorda.

Ela conta que não sentiu medo porque a médica lhe transmitiu confiança. O resultado, segundo Talita, foi transformador. Ela descreve a experiência como uma sensação indescritível, marcada por alegria e gratidão. Reconhece, no entanto, a dualidade do transplante: a felicidade de quem recebe contrasta com a dor da família que perdeu um ente querido.

“A visão tem um papel especial na nossa vida. Sem ela, tudo se torna muito mais complicado”, afirma. Hoje, diz ter mudado “100%”, vivendo apenas de alegria e gratidão.

Quando a dor vira solidariedade

Foto: Arquivo Pessoal

Se, de um lado, estão pacientes que aguardam ou receberam órgãos, do outro, há famílias que, em meio ao luto, decidem transformar a perda em esperança. É o caso da psicóloga clínica Ana Eryka Guimarães de França, irmã de José Emerson de Souza, que faleceu aos 44 anos após um AVC hemorrágico, em março de 2025.

Ana lembra do irmão como uma pessoa alegre, divertida e brincalhona. “Ele era meu parceiro. Mesmo entre brigas bobas do dia a dia, sempre fazíamos as pazes no fim. Era uma pessoa boa, que ajudava sempre que podia, e deixou três filhos que hoje são meus amores”, descreve.

Na ocasião da morte encefálica, a família autorizou a doação dos rins, das córneas e do fígado. O coração não pôde ser aproveitado por conta de uma cardiopatia severa não identificada anteriormente.

A psicóloga destaca que a forma como a equipe da Organização de Procura de Órgãos (OPO) conduziu o processo foi determinante para a decisão. O acolhimento humano e a paciência da equipe, que deixou claro que a família teria todo o tempo necessário para refletir, trouxeram segurança em um momento delicado. “Ali, muitos mitos caíram, dúvidas foram esclarecidas e isso fez toda a diferença”, afirma.

“Ele continua vivo em outras pessoas”

Lidar com o luto e, ao mesmo tempo, com a ideia de que a vida do irmão continuaria em outras pessoas foi um processo paradoxal para Ana Eryka. Ela descreve como um “antagonismo”: de um lado, a dor irreparável da perda; de outro, o alívio de saber que outras famílias deixariam de sofrer. “É um ciclo que se fecha. Ele morreu, mas continua vivo em outras pessoas. Isso nos trouxe paz.”

Para ela, pensar que pelo menos cinco pessoas hoje carregam um pouco da vida de Emerson é motivo de gratidão. “Mando sempre energia positiva para essas famílias. Meu irmão foi muito feliz em vida, e desejo que essas pessoas possam viver bem da mesma forma.”

Ana também deixa uma reflexão para quem enfrenta a decisão de doar órgãos: que respirem fundo, conversem com a equipe médica e pensem no bem que pode ser feito. Ela lembra que a morte é inevitável, mas a escolha pela doação transforma a finitude em continuidade. “Se fosse apenas um órgão a ser retirado do meu irmão, eu ainda assim autorizaria. Uma vida salva já teria valido a pena.”

A decisão que já estava tomada

Foto: Arquivo Pessoal

A conversa sobre doação de órgãos nunca aconteceu na família de Ana Eryka enquanto seu irmão estava vivo. Com a morte, a decisão foi tomada em conjunto, e os familiares optaram pela doação. Já no caso de Mara Carolina de Lima Galvão, 40 anos, professora, o processo foi diferente: sua mãe, Edilza Conceição de Lima, sempre falou em vida que era doadora de órgãos, o que tornou a decisão mais natural.

Mara conta que a mãe, que morreu aos 72 anos, nunca teve receio de falar sobre o tema. “Ela sempre declarou ser doadora. Quando a morte foi confirmada, fomos chamados para conversar com a equipe do hospital. Foi um processo doloroso, mas não tivemos dúvidas, porque era o desejo dela”, relata.

A clareza sobre o assunto vinha da trajetória profissional da mãe, que trabalhou durante anos no Hospital Universitário, na pediatria, como auxiliar de enfermagem. A convivência com a dor e a finitude fazia parte da rotina e a tornava consciente sobre a importância de ajudar o próximo. “Há quem pensasse que ela era fria, mas, na verdade, era muito consciente”, afirma Mara.

Durante a internação no Hospital Geral do Estado (HGE), em Maceió, a família recebeu explicações detalhadas da equipe médica sobre todo o processo. Foram doados os rins, já que as córneas estavam comprometidas.

Para Mara, doar é um gesto de generosidade e desprendimento. “É uma forma de fazer algo quando não há mais o que ser feito por si. Minha mãe era uma mulher lúcida, tranquila e generosa, e nós apenas respeitamos sua vontade”, diz. A saudade, porém, permanece.

“Quem puder doar, que doe. Não acho que seja sobre viver através de outras pessoas, mas é uma forma de contribuir com a jornada de quem ainda pode e precisa estar aqui”, conclui.

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.
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