Imagine entrar no trabalho e ouvir piadas sobre sua fé, ser proibida de usar um acessório religioso ou até perder oportunidades de promoção por participar de rituais da sua crença. Para muita gente, isso pode parecer apenas uma “opinião” ou uma “brincadeira”. Mas a lei é clara: trata-se de racismo religioso, um crime previsto na Constituição que pode e deve ser denunciado.
A Constituição assegura a liberdade religiosa e proíbe qualquer forma de discriminação. A Lei 14.532/2023 reforçou essa proteção ao equiparar a injúria religiosa ao crime de racismo. Na esfera trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Lei 9.029/1995 também proíbem práticas discriminatórias por motivos de raça, cor e religião.
Segundo a procuradora Marcela Dória, coordenadora do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT/AL), o racismo religioso pode se manifestar de formas sutis, mas sempre ofensivas e dolorosas para quem sofre.
“Pode começar ainda no processo seletivo, quando a trabalhadora deixa de ser contratada em razão de sua fé. Também aparece em comentários depreciativos, impedimento do uso de símbolos, negativa de flexibilização de jornada para rituais, limitação de ascensão profissional ou até dispensas discriminatórias”, explica.
Intolerância religiosa x racismo religioso

Para diferenciar intolerância de racismo religioso, Marcela lembra que a Constituição, junto a normas internacionais, garante a proteção contra a discriminação no trabalho.
Marcela explica que, segundo a Convenção 111 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade no emprego ou na profissão deve ser considerada um ato discriminatório. “Isso vale quando a prática é baseada em fatores como raça, cor, sexo, religião, opinião política, origem social ou outros critérios”, detalha.
Assim, qualquer exclusão ou tratamento desigual por motivo de fé deve ser entendido como ato discriminatório. Quando o alvo são religiões de matriz africana, ligadas historicamente a questões raciais e étnicas, a situação ultrapassa a intolerância religiosa e passa a ser reconhecida como racismo religioso.
“Vai além da intolerância religiosa comum: envolve estigmatização, violência simbólica e exclusão social, reforçando o racismo estrutural”, explica.
Canais formais de denúncia e atuação do MPT
A procuradora também reforça que há canais formais de denúncia. O Disque 100 recebe queixas de violações de direitos humanos e as encaminha às autoridades competentes. Já o MPT pode ser acionado diretamente pelo site.
Além disso, a Justiça do Trabalho é o espaço para buscar reparações individuais. “O MPT tem atuado cada vez mais para promover a liberdade religiosa no mercado de trabalho, instaurando inquéritos, ajuizando ações civis públicas e promovendo campanhas de conscientização”, afirma a procuradora.
Empresas e agressores podem ser responsabilizados

A advogada criminalista e membra do Instituto do Negro de Alagoas (INEG/AL), Sandra Gomes, reforça que o racismo religioso é crime. Sandra detalha os sinais mais comuns: humilhações, piadas, apelidos, exigência de retirada de adereços religiosos, pressão para abandonar a fé, restrição ao uso de símbolos ou comentários vexatórios. Para ela, a diferença entre intolerância e racismo religioso está no marco histórico.
“Quando a ofensa atinge religiões de matriz africana, não se trata apenas de intolerância, mas de racismo estrutural. E racismo é crime inafiançável e imprescritível”, reforça.
Ela destaca que a omissão da empresa também gera responsabilidade. O empregador responde civil e trabalhista, podendo ser condenado a pagar indenizações. Gestores podem até ser responsabilizados criminalmente se concorrerem para a prática.
O Tribunal Superior do Trabalho já reconheceu casos em que trabalhadores do Candomblé foram indenizados por sofrer discriminação religiosa. Em uma decisão emblemática, a 3ª Turma manteve a indenização a uma funcionária alvo de deboches em razão de sua fé, entendendo que houve violação à dignidade da pessoa humana.
Além das reparações individuais, ações coletivas movidas pelo MPT podem levar empresas a arcar com indenizações coletivas, destinadas a fundos de promoção de direitos humanos. Na esfera criminal, a Lei 7.716/1989, alterada pela Lei 14.532/2023, prevê penas que incluem reclusão para quem pratica atos de racismo, inclusive os de caráter religioso.
Orientações práticas: o que a vítima deve fazer

Já a advogada Nathalia Barboza disse que a vítima pode registrar o que acontece e usar como provas: anotar datas, guardar mensagens de texto ou e-mails, reunir testemunhas e, quando possível, armazenar gravações que comprovem a conduta discriminatória. Ter provas consistentes é fundamental para fortalecer a denúncia.
Depois disso, a orientação é buscar os canais internos da empresa, como RH, liderança ou ouvidoria. Caso a resposta seja insuficiente, a trabalhadora deve procurar o sindicato, apoio jurídico e os órgãos competentes. “O silêncio só fortalece a prática discriminatória”, alerta Nathalia.
Ela lembra ainda que a Constituição assegura a liberdade religiosa e a legislação trabalhista protege contra práticas discriminatórias. Por isso, é possível registrar boletim de ocorrência na polícia, acionar a Justiça do Trabalho para reparação por dano moral e, em casos de omissão do empregador, pedir até a rescisão indireta do contrato.
Para Nathalia, também cabe às empresas assumir a responsabilidade de criar políticas internas claras, promover treinamentos e acolher denúncias com seriedade. Caso se omitam, respondem pelos atos de seus empregados.
“Nenhum trabalhador é obrigado a escolher entre sua fé e seu emprego. A lei garante respeito, e cabe às empresas criar um ambiente seguro, diverso e livre de preconceito”, conclui.