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Da violência ao acolhimento: como a própria história de vida de Josina Mendes deu origem ao Instituto Mamães Corujas

Crescer em um ambiente onde a infância não acontece e o futuro parece inviável é uma realidade que se repete para milhares de crianças brasileiras. Silêncios impostos, ausências de cuidado e a sensação de que não haverá saída marcam histórias que, muitas vezes, permanecem invisíveis. Ainda assim, algumas trajetórias mostram que é possível transformar feridas em movimento coletivo.

É nesse ponto que se encontra a história de Josina Mendes, assistente social, conselheira municipal e fundadora do Instituto Mamães Corujas, localizado no bairro do Benedito Bentes, em Maceió. Depois de atravessar experiências de fome, abandono e violência, ela transformou a própria dor em propósito e, há 18 anos, coordena um trabalho de acolhimento que já alcançou mais de 5 mil mulheres em situação de vulnerabilidade em Alagoas.

Infância marcada pela violência

Foto: Arquivo Pessoal

Quando olha para trás, Josina não encontra lembranças de uma infância comum. O que vem à memória são episódios de dor. Entre os seis e os 13 anos, viveu abusos e se viu obrigada a amadurecer cedo. Tentou pedir ajuda, chegou a relatar o que acontecia à mãe, mas não foi ouvida.

“Algumas feridas cicatrizam, outras nunca param de doer. O silêncio maltrata, mas maltrata menos do que você falar e não ser enxergada, não ser salva”, relata à Eufêmea.

Ao mesmo tempo, as experiências da mãe serviram como motivação. Em vez de espelhar-se nos exemplos que tinha dentro de casa, estabeleceu a promessa de nunca repetir aquele ciclo. “Sempre falei para mim mesma que não queria aquela vida, que faria diferente. Coloquei como meta mudar de destino, e assim foi.”

Aos 15 anos, Josina enfrentou uma das experiências mais duras de sua vida: entregar a filha para adoção. Ela define a lembrança como um vazio permanente, um espaço que tenta preencher até hoje.

“É um vazio que nunca se acaba. Tento preencher com estudos, com trabalho, com amigos, com o Mamães Corujas”, explica.

Essa ausência se soma a outras lacunas, como a de não ter vivido uma infância, de não ter conhecido uma família estruturada. Cada uma delas, segundo ela, passou a ser transformada em combustível para seguir adiante.

Educação como resistência

Foto: Arquivo Pessoal

Sem ter frequentado a escola regularmente, Josina só retomou os estudos já adulta. Conquistou o ensino médio pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e decidiu prosseguir. Formou-se em Serviço Social e se tornou a primeira da família a obter diploma universitário.

“Hoje sou assistente social em um hospital, além de atuar no projeto de vida que é o Instituto Mamães Corujas. Preciso estudar o dobro em relação às minhas colegas, mas vale a pena. É uma vitória saber que consegui contrariar todas as expectativas”, conta.

Doação que virou projeto

O ponto de virada veio em 2007. Dois anos após o casamento, já com alguma estabilidade financeira, Josina começou a distribuir enxovais e alimentos para gestantes. O que nasceu como uma ação simples, sustentada apenas com recursos próprios, cresceu e se transformou no que hoje é o Instituto Mamães Corujas.

“O primeiro passo foi ter coragem: voltar a conviver com gestantes e crianças, mesmo sabendo que isso me causaria dores, e investir para ajudar pessoas que eu nem conhecia”, lembra.

O maior desafio, afirma, nunca foi começar, mas manter. “A continuidade é o que exige mais força. Diariamente enfrentamos dificuldades, mas sigo tentando acolher mulheres e meninas com respeito e empatia.”

Do pré-natal à busca por doações

O Instituto atende gestantes em situação de vulnerabilidade, acompanhando-as desde o pré-natal até pelo menos seis meses após o parto. Nesse período, as mulheres participam de consultas mensais, recebem acompanhamento psicológico semanal e têm acesso a atividades em grupo.

Também recebem cestas básicas, itens de higiene e, ao final da gestação, um enxoval completo para o bebê. A inscrição pode ser feita por encaminhamentos das unidades básicas de saúde, por indicação de outras gestantes, por redes sociais ou até por buscas na internet.

Todas as atividades são realizadas por voluntários. Não há recursos públicos envolvidos. “Sobrevivemos exclusivamente de doações e apoio de empresas”, destaca.

Cinco mil mulheres atendidas

Em 18 anos de atuação, mais de 5 mil mulheres já foram atendidas. O impacto é medido de diferentes formas: por pesquisas de satisfação, por enquetes e, sobretudo, pelos indicadores que mostram mudanças concretas.

“Mais de 90% das assistidas não voltam a gestar de forma não planejada. Muitas retornam aos estudos, outras começam a trabalhar ou a empreender. São histórias que mostram que é possível transformar a realidade”, afirma Josina.

Ao longo da trajetória, a assistente social encontrou em outras mulheres ecos de sua própria vida. “O que mais me emociona é encontrar tantas ‘Josinas’ no caminho. Histórias iguais à minha. Para muitas, eu sou porto seguro, para outras, a única referência. Isso me mostra que não estou só e que não posso desistir.”

“Existe saída. É difícil acreditar quando se está na dor, mas existe. É preciso colocar uma meta e não parar até chegar ao objetivo. Não é fácil, muitas vezes dói, mas a persistência leva ao resultado”, continua.

Sonhos para o futuro

Hoje, o maior desejo é conquistar uma sede própria para o Instituto. Além disso, ela sonha em transformar o Mamães Corujas em uma política pública, presente em todos os municípios de Alagoas.

“Já procuramos artistas, políticos, apresentadores. Ainda não conseguimos, mas não vamos recuar. Quero que cada gestante tenha um lugar seguro para ser acolhida. Meu sonho é visitar e atuar em todos os municípios do estado.”

Mulheres interessadas em participar podem se inscrever pelos canais de contato do Instituto, passar pela avaliação social e, atendendo aos critérios, são inseridas na rede de atendimento.

Voluntários também podem se engajar nas mais diversas áreas, do trabalho com o público infantil às tarefas administrativas ou até de construção civil. Empresas e apoiadores são convidados a conhecer o projeto e contribuir financeiramente.



Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.
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