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De abrigos a lares temporários: entenda como funciona o serviço Família Acolhedora em Maceió

Maceió viveu um momento inédito em 2025: duas crianças, irmãos de sete e quatro anos, foram as primeiras a deixar um abrigo institucional para receber cuidado em uma família acolhedora. A experiência marcou o início do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA) no município e abriu espaço para que outras famílias participem dessa forma de proteção à infância.

Em entrevista à Eufêmea, o casal que recebeu os irmãos relata que já conhecia a realidade de crianças em abrigos. Antes de se inscrever no serviço, os dois atuaram como voluntários em instituições de acolhimento temporário. Essa vivência os aproximou da temática e despertou o interesse em participar mais ativamente.

“Já tínhamos essa percepção de como a infância perde muito ao ser institucionalizada. O desejo de se aproximar voltava e ia. Até que vimos o anúncio no site da prefeitura e nos inscrevemos para conhecer melhor”, relatou a integrante da primeira família acolhedora de Alagoas, que prefere não ser identificada para preservar as crianças.

O processo de habilitação envolveu entrevistas individuais e coletivas com psicólogos e assistentes sociais, visitas domiciliares e uma formação intensiva. “A formação foi um processo intenso, com encontros voltados à temática da infância e à vivência de famílias acolhedoras em outros estados”, explicou.

A notícia de que receberiam duas crianças chegou por meio da equipe técnica. Segundo a família, a assistente social e o psicólogo foram até a casa para informar sobre os irmãos que necessitavam de acolhimento. Naquele momento, eles já se preparavam para a chegada, organizando o quarto e providenciando roupas.

O primeiro contato foi marcado por expectativa e cuidado. “Havíamos dialogado muito sobre como, para cada criança, pode ser diferente. Quando os encontramos, a aproximação se deu por meio do lúdico”, contou.

Com o início da convivência, vieram as adaptações. A família relatou que algumas mudanças só puderam acontecer à medida que conheceram a dinâmica das crianças e que os ajustes têm sido constantes desde a chegada dos irmãos.

Eles também destacam o papel do acompanhamento técnico no processo. “A equipe nos ampara bastante, nos ajudando nas dúvidas e receios. Quem tiver disposição deveria conversar com eles e iniciar o processo.”

O que é o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora

Foto: Arquivo Pessoal

Para a gerente do SFA, Lidiane Guedes, é importante esclarecer que o Família Acolhedora não é um programa temporário, mas um serviço permanente da política de assistência social, previsto desde 2009. “Nas políticas públicas, o programa tem um fim. O Família Acolhedora é um serviço permanente, e só agora o país vive um movimento mais consistente de implantação, embasado em pesquisas científicas”, explicou.

O diferencial em relação ao acolhimento institucional está no tipo de cuidado oferecido. No modelo coletivo, a criança recebe atenção de diferentes profissionais em turnos. Já no familiar, há convivência comunitária e um cuidado singular, com uma pessoa ou uma família de referência capazes de ressignificar vínculos fragilizados.

Como funciona a seleção das famílias

A seleção das famílias passa por análise documental (certidões, declaração de não estar inscrito no Sistema Nacional de Adoção, comprovantes de renda, atestados de saúde física e mental), avaliações sociais e psicológicas e visita domiciliar. Em Maceió e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o acolhimento em família acolhedora é uma medida excepcional e provisória, não podendo exceder um prazo máximo de 18 meses.

As informações estão disponíveis no site da Prefeitura de Maceió. Clique aqui

“Na formação, a gente prepara as famílias para entender o desenvolvimento infantil, a realidade de onde essas crianças vêm, que muitas vezes envolve vulnerabilidade e violência. Falamos sobre manejo com crianças em diferentes idades e sobre as normativas que regem o serviço. É uma formação completa, mas também serve para observar quais valores e quais bagagens emocionais a família traz”, detalhou Lidiane.

Adesão ainda é um desafio

O serviço começou a funcionar em outubro de 2024. Desde então, 21 inscrições foram feitas, mas apenas duas chegaram à etapa de seleção e somente uma família foi habilitada.

“Quando a gente apresenta todos os detalhes, há uma tendência ao declínio. É preciso que a família esteja preparada para cuidar, mas também para o momento da partida. O desafio é ensinar o amor sem posse e a cidadania. Esse é um dos maiores desafios”, afirmou.

Segundo Lidiane, fatores culturais e sociais também ajudam a explicar a baixa adesão. Ela lembra que o Nordeste não tem uma tradição forte de voluntariado e que grande parte da população trabalha intensamente para garantir a sobrevivência.

“O voluntariado exige tempo e doação, e isso nem sempre é possível para quem vive em situação de vulnerabilidade ou até mesmo para a classe média, que também é muito trabalhadora”, afirma.

O papel da equipe técnica no serviço

O acompanhamento é realizado em regime de sobreaviso, todos os dias do ano. Na tipificação nacional, para cada 15 crianças em acolhimento, exige-se uma dupla formada por psicólogo e assistente social. Esses profissionais observam o desenvolvimento da criança, apoiam a família acolhedora nas dúvidas e angústias e acompanham a família de origem no processo de refazer sua função protetiva.

Como explicou Lidiane, o foco principal é a reorganização da família de origem ou extensa, já que o afastamento da criança decorre de uma violação de direitos. Apenas quando não há possibilidade de retorno, a criança é encaminhada para adoção, medida que não é considerada a primeira opção.

O olhar da assistência social

Foto: Arquivo Pessoal

A assistente social Selma Ramos Silva reforça que o acompanhamento é constante. “Nós realizamos reuniões, visitas domiciliares e mantemos contato para oferecer apoio, orientação e monitorar tanto a família acolhedora quanto o processo da criança e do adolescente”, disse.

Esse acompanhamento também alcança a família de origem, com o objetivo de fortalecer vínculos e promover a reintegração.

Antes da aprovação, são avaliados critérios sociais e emocionais, como disponibilidade afetiva, concordância de todos os membros da família e convivência em ambiente livre de riscos, como o uso de álcool e drogas.

Para Selma, o maior desafio é a captação de famílias. “Não temos uma cultura consolidada de voluntariado, o que limita bastante a adesão”, explicou. Além disso, famílias acolhedoras enfrentam obstáculos como o apego às crianças, o processo de despedida e a aceitação da temporariedade.

Ela lembra que os candidatos passam por um processo de capacitação, com palestras, avaliação psicossocial, formação inicial e acompanhamento contínuo. E acrescenta que toda a sociedade pode colaborar, mesmo sem acolher diretamente, por exemplo. “Divulgando o serviço, participando de campanhas, oferecendo doações ou apoiando as famílias e os profissionais envolvidos.”

O impacto psicológico nas crianças

Foto: Arquivo Pessoal

Para a psicóloga Camila Silveira, o acolhimento familiar impacta diretamente no desenvolvimento emocional das crianças. “O cérebro precisa de previsibilidade, de estabilidade, de segurança. No acolhimento familiar, essa realidade é mais palpável, porque a criança tem um atendimento individualizado, um olhar constante e a possibilidade de vínculos mais seguros”, afirmou.

Segundo ela, detalhes como ter um espaço próprio para dormir, objetos pessoais e uma rotina próxima à realidade comunitária favorecem a adaptação.

Camila explica que a preparação para chegada e despedida começa já na reunião inicial com os candidatos e se estende por toda a formação. “Temos um módulo específico sobre o tema e trazemos relatos de famílias e crianças que já viveram essa experiência”, relatou.

O processo é gradual: a criança é informada sobre o serviço, participa de encontros progressivos e, só depois, vai para a casa da família, inclusive com pernoites acompanhados, até que a guarda provisória seja formalizada. Durante todo o período, o tema da despedida não é evitado.

Entre os sinais mais comuns na chegada estão timidez, silêncio e dificuldade de expressar sentimentos. “A aproximação é feita com tempo, respeito e afeto, até que elas percebam que estão em um ambiente seguro”, disse Camila.

A psicóloga acrescenta que, antes da habilitação, as famílias passam por avaliação psicológica cuidadosa, que investiga história de vida, competências de cuidado e estilo parental. E, durante o acolhimento, a equipe acompanha a criança de perto, com visitas à casa e à escola. Nos casos de demandas emocionais mais profundas, há encaminhamento para psicoterapia ou acompanhamento psiquiátrico na rede de saúde.

“O papel da psicologia é olhar para todos os envolvidos: criança, adolescente, família acolhedora e família de origem. Todos estão em situação de vulnerabilidade e precisam de apoio para atravessar esse processo com mais equilíbrio emocional. O acolhimento familiar é uma fase, e nosso objetivo é que todos saiam dela com vínculos mais saudáveis e perspectivas de vida mais seguras”, conclui.

Acolhimento x Adoção: entenda as diferenças

O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora não é adoção. Enquanto o SFA garante proteção temporária e excepcional a crianças e adolescentes afastados de suas famílias por decisão judicial, a adoção representa uma medida definitiva, que encerra os vínculos jurídicos com a família de origem e cria uma nova filiação legal.

No SFA, a guarda é provisória e o objetivo principal é oferecer segurança, afeto e convivência comunitária até que seja possível o retorno à família de origem ou, caso isso não ocorra, a inclusão em um processo de adoção.

Foto de Rebecca Moura

Rebecca Moura

Jornalista formada pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.
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