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“O silêncio nunca foi nossa parada”

Por Anne Caroline Fidelis e Rosana Coutinho

Ela entra no ônibus.
Não é só mais uma viagem, é o cotidiano.
Carrega bolsa, sonhos, pressa, às vezes cansaço.
Mas carrega também o medo que não deveria carregar.
O medo do olhar invasivo, da mão que insiste,
do corpo que invade o seu espaço sem pedir licença.

Por muito tempo, restou apenas o silêncio.
O silêncio que sufoca, que fere, que aprisiona.
Mas hoje, ele já não nos serve.
Porque o silêncio nunca foi nossa parada.

No dia 18 de agosto, participamos de um momento emblemático em nossa cidade: o lançamento da campanha “O silêncio nunca foi nossa parada”, promovida pelo Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Passageiros de Maceió (Sinturb), em parceria com a Semuc, o Ministério Público de Alagoas, o Sest Senat, Eufêmea e diversas outras instituições.

O evento, realizado no Five Sport Bar, no Maceió Shopping, apresentou ao público um ônibus adesivado e as peças que circularão em outdoors, painéis de LED e outbus pela cidade, levando uma mensagem clara e urgente: o combate à importunação sexual não pode ser adiado e deve ser associado a medidas práticas, como o incentivo à denúncia, o estabelecimento de protocolos de atuação e o treinamento de motoristas, funcionários e funcionárias das empresas de transporte.

O impacto dessa iniciativa vai além da comunicação visual. Ele se traduz em um gesto político, que afirma às mulheres que o espaço urbano é de todas e todos e a cidade não aceitará mais o silêncio como resposta. O transporte público é, por excelência, um espaço de convivência coletiva, e justamente por isso não pode se tornar um lugar de medo e de violências invisibilizadas. Cada adesivo, cada mensagem estampada em um ônibus, é um lembrete de que estamos construindo um pacto social para que nossas ruas e ônibus sejam de fato territórios de cidadania.

Esse movimento atual se conecta com uma trajetória de lutas. Em 2017, um caso chocou o país: um homem foi detido em São Paulo por ejacular sobre uma passageira em um ônibus lotado. Não era a primeira vez que ele cometia esse ato, mas, à época, a legislação tratava a conduta como mera contravenção penal.

A revolta da sociedade foi imediata. Como aceitar que tamanha violência contra a dignidade da mulher fosse enquadrada apenas como um ato menor, sem a gravidade que realmente possui? Esse episódio impulsionou o debate público e resultou no Projeto de Lei nº 8476/2017, de autoria da deputada Renata Abreu, que levou à aprovação unânime da Lei nº 13.718/2018, marco jurídico que tipificou a importunação sexual como crime, prevendo pena de um a cinco anos de reclusão.

A aprovação dessa lei foi um divisor de águas. Pela primeira vez, o ordenamento jurídico brasileiro reconheceu que atos de natureza sexual não consentidos, praticados em locais públicos ou de grande circulação, como ônibus e metrôs, não eram “brincadeiras” nem “excessos”, mas sim violências sérias, que ofendem a dignidade sexual e a autonomia das mulheres.

A teoria feminista nos ajuda a compreender por que esses episódios não são isolados, mas sim manifestações de um sistema de opressão. Heleieth Saffioti já alertava que a violência contra as mulheres é estrutural, sustentada por uma ordem patriarcal que organiza as relações sociais e legitima a dominação masculina (SAFFIOTI, 2004).

Rita Segato acrescenta: o corpo feminino, sobretudo nos espaços públicos, é tratado como território de poder, onde homens reafirmam posições de dominação (SEGATO, 2003). E Judith Butler nos lembra que o gênero não é apenas identidade, mas uma norma reguladora que define quem pode aparecer no espaço público e quem deve ser empurrada à sombra (BUTLER, 2015).

Essas lentes teóricas mostram que a importunação sexual em ônibus e metrôs não é uma simples “infração de conduta” ou uma “triste coincidência”, mas sim uma das expressões mais visíveis da desigualdade de gênero em nossas cidades. A cada dia, mulheres enfrentam não apenas o trajeto de casa ao trabalho, mas também o desafio de resistir a toques indesejados, olhares invasivos, assédios verbais e até agressões físicas.

Se perguntarmos a qualquer grupo de mulheres que utiliza transporte coletivo se já viveram episódios de importunação sexual, a resposta será quase unânime: a grande maioria já passou por isso. Essa normalização revela como a violência se infiltra no cotidiano, moldando comportamentos e cerceando a liberdade feminina.

É justamente por isso que a campanha lançada em Maceió é tão significativa. Ao afirmar que “o silêncio nunca foi nossa parada”, ela rompe com a lógica que historicamente relegou essas violências à invisibilidade. Ela convida a sociedade a reconhecer que a mobilidade urbana também é uma questão de gênero, e que uma cidade só pode ser verdadeiramente democrática quando as mulheres se deslocam nela sem medo.

O transporte público é o fio que costura os caminhos de milhares de mulheres todos os dias. Nele, cabe a pressa da trabalhadora, o cansaço da estudante, o sonho da jovem que vai a uma entrevista, a esperança da mãe que retorna para casa. Não podemos permitir que esse fio seja rasgado pela violência. Um ônibus adesivado que percorre as ruas de Maceió é, ao mesmo tempo, um símbolo e uma promessa. Ele nos lembra que cada trajeto importa, que cada mulher importa, e que o silêncio não é mais um destino possível.

Quando esse ônibus passa, não passa sozinho. Passam com ele as histórias de todas que já viveram a dor de serem tocadas sem consentimento, passam com ele as lutas feministas que abriram caminho para que o direito reconhecesse o óbvio: que não há nada de banal na violência contra mulheres. Passa com ele a esperança de que, a cada dia, mais vozes se unam ao coro que repete: o silêncio nunca foi nossa parada.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementales de la violencia. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.

BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm. Acesso em: 20 ago. 2025.

Foto de Direito Delas

Direito Delas

Comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.
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