Foto: Gabriela Holanda/Cortesia
O cuidado integral de uma mãe solo com o filho, historicamente tratado apenas como um ato de amor, passou a ser reconhecido também como trabalho com valor social e econômico. Desde março de 2023, o Protocolo CNJ nº 492/2023 orienta juízes a considerar o chamado “trabalho invisível materno”, especialmente em casos de cuidado exclusivo de crianças com deficiência ou comorbidades, como fundamento em ações de revisão da pensão alimentícia.
O que é o trabalho invisível materno
Em entrevista à Eufêmea, a advogada e professora universitária Gabriela Holanda explica que o trabalho invisível é composto pelas tarefas que sustentam a vida familiar, mas que não aparecem em folhas de pagamento. Inclui preparar refeições, cuidar da higiene e da saúde dos filhos, organizar a casa, acompanhar a escola, levar a consultas médicas e estar disponível em tempo integral.
“Historicamente, esse esforço foi tratado como dever natural das mulheres, e não como trabalho com valor econômico e social”, afirma.
O trabalho invisível garante o funcionamento da família e o desenvolvimento cognitivo e afetivo das crianças. Contudo, recai de forma desproporcional sobre as mães. “Um exemplo prático é o da mãe solo que, ao passar o dia cuidando do filho pequeno, não consegue competir em igualdade no mercado de trabalho com alguém que não tem essas responsabilidades”, explica.
Segundo Holanda, os efeitos são tanto físicos quanto sociais: exaustão emocional, ansiedade e perda de oportunidades profissionais. O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que essa dedicação compromete a inserção da mãe solo no mercado e deve ser considerada no cálculo da pensão.
Caminhos para valorização
Para a professora, a valorização começa pelo reconhecimento jurídico. Já existem decisões que majoraram pensões com base nesse trabalho. Além disso, políticas públicas — como creches acessíveis e licenças parentais justas — e o compartilhamento das tarefas dentro da família são fundamentais. “Não se trata de favor, mas de uma contribuição concreta que deve ser partilhada entre os pais”, resume.
Holanda cita decisões do STJ e de tribunais do Paraná e de São Paulo que reconheceram a chamada “economia do cuidado” como critério de majoração da pensão. Para fundamentar pedidos, provas eficazes incluem laudos sociais, depoimentos, comprovantes de gastos e dados do IBGE, que apontam que as mulheres dedicam em média dez horas a mais por semana a afazeres domésticos e de cuidado em relação aos homens.
O Protocolo orienta magistrados a considerar o cuidado não remunerado nas decisões, evitando transformar processos em julgamentos morais das mães. Já há decisões em que a pensão foi fixada em percentual da renda líquida do pai — como 33% da renda líquida em um caso no Paraná.
“O critério é sempre equilibrar as necessidades do filho, a capacidade financeira do genitor e a carga assumida pela mãe”, afirma Holanda.
Jurisprudência e reconhecimento judicial

No Direito, decisões anteriores de tribunais podem orientar novos casos. Esse conjunto é chamado de jurisprudência. Quando diversos julgados seguem o mesmo raciocínio, se forma a chamada jurisprudência pacífica, que acaba por se consolidar como referência para casos semelhantes.
A advogada especialista em Direito de Família Bárbara Ribeiro explica que é a partir desse mecanismo que os pedidos envolvendo o trabalho invisível materno têm sido apresentados. Segundo Ribeiro, o papel dos advogados é demonstrar ao juiz que já há casos semelhantes julgados favoravelmente. “Com base em decisões anteriores sobre um caso parecido nós fazemos o pedido perante a Justiça”, afirma.
Embora ainda haja poucas decisões relacionadas ao Protocolo 492/2023 em Alagoas — apenas dez, de acordo com dados do CNJ — a advogada avalia que se trata de um avanço com grande potencial de impacto futuro.
Impactos sociais e realidade das mães alagoanas
Com mais de dez anos de experiência no Direito de Família e atuação também no setor público, a advogada afirma que o peso da maternidade solo atinge mulheres de todas as classes sociais. “Quanto menos recursos financeiros, mais difícil é a rotina, mas o impacto negativo da maternidade atinge a todas as classes sociais, assim como a violência doméstica”, diz.
Para ela, ainda é enraizada na sociedade a visão de que o cuidado é um dever exclusivamente materno, tratado como obrigação moral e legal. Essa percepção dificulta a valorização do trabalho diário das mães e reforça desigualdades. “Há mulheres quebrando os paradigmas e o Direito corre atrás de regulamentar o dia a dia da sociedade. Assim nasceu a Resolução do CNJ”, explica.
Documentos e provas necessárias
Para solicitar a revisão da pensão alimentícia com base no trabalho invisível, a mãe deve comprovar tanto a necessidade do acolhimento financeiro quanto os custos da maternidade. Entre os documentos mais eficazes, Ribeiro cita:
- Comprovantes de despesas, como aluguel, condomínio, luz, água, energia e outras despesas de casa;
- Despesas da criança, como escola e saúde;
- Registro de nascimento da criança;
- Documentos que comprovem o abandono afetivo do pai, se for o caso;
- Exames e laudos médicos em casos de crianças atípicas;
- Comprovação da carga horária escolar da criança e da disponibilidade de trabalho da mãe;
- Custos com ajuda externa quando necessária.
Essas provas devem mostrar que a criança precisa ser assistida principalmente pela mãe. Casos envolvendo crianças atípicas reforçam ainda mais a necessidade de tempo e dedicação. Para dar entrada no pedido, a mãe pode recorrer a uma advogada particular ou buscar atendimento gratuito pela Defensoria Pública, que presta assistência jurídica em casos de Direito de Família.
Desafios: machismo e visão do Judiciário
Segundo a advogada, o maior entrave continua sendo o machismo. “O cuidar materno é visto como obrigação social. A mãe ‘não faz mais que a obrigação’. Há também a crença de que a mulher consegue fazer tudo sozinha, muitas vezes por pura falta de suporte”, afirma.
Ela aponta que esse olhar se reproduz nas audiências e nos corredores das varas de família. Um exemplo é a tentativa de dividir custos da criança em 50% para cada genitor, sem considerar o tempo e a dedicação do cuidador principal.
“O cálculo ideal precisa levar em conta necessidade, possibilidade, proporcionalidade e razoabilidade. No Direito de Família não existem casos idênticos; cada família traz particularidades únicas”, explica.
Por outro lado, observa que ainda há resistência por parte da magistratura, sobretudo entre perfis mais tradicionais, que oscilam entre duas visões: de um lado, a postura machista que naturaliza a submissão da mulher; de outro, a ideia de que a obrigação masculina se resume ao pagamento da pensão, como se isso fosse suficiente. “Isso cria situações absurdas”, avalia.
O contraste entre avanços legais e práticas judiciais fica evidente em situações vividas pela advogada. Ela relata uma audiência de divórcio em que sua cliente já tinha medida protetiva pela Lei Maria da Penha. Durante a sessão, a juíza perguntou há quanto tempo o casal estava junto. A resposta foi: mais de 20 anos. A magistrada, então, sugeriu: “Nossa, tanto tempo juntos, por que não voltam?”.
“Era um divórcio decorrente de violência doméstica, com medida protetiva em vigor. Não havia espaço para reconciliação”, recorda Ribeiro.
Caminhos no Direito e iniciativas de apoio
Embora o tema ainda seja considerado embrionário, Ribeiro lembra que já existem experiências de reconhecimento do trabalho invisível em outras áreas do Direito. Entre elas estão a redução da jornada de trabalho para quem cuida de crianças autistas, a aposentadoria especial e o atendimento psicológico para mães que cuidam de filhos com TEA [Transtorno do Espectro Autista].
Além da atuação jurídica, a advogada desenvolve projetos sociais para ampliar a divulgação de informações sobre os direitos das mães. “O conhecimento liberta. Através do conhecimento podemos sair de situações que nos aprisionam”, afirma.
Ela destaca a importância de dar visibilidade a iniciativas inovadoras em áreas como educação, saúde e Judiciário, mas reforça que conhecer os direitos é condição essencial para exigi-los. “Para podermos exigir, precisamos conhecer”, conclui.