Vivemos um momento crucial na história recente do país. Com a aposentadoria do ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo Tribunal Federal volta a ter uma cadeira aberta. E, mais uma vez, a pergunta se impõe com força e urgência: por que não uma mulher?
Desde a criação da Corte, em 28 de fevereiro de 1891, o Supremo teve apenas três mulheres entre mais de 170 ministros (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2025). O dado é mais do que estatístico: é um espelho das desigualdades que estruturam o poder. As mulheres sempre estiveram nas salas de audiência, nas universidades, nas defensorias e nos escritórios, mas raramente no topo das instituições. Quando chegam lá, são tratadas como exceção e não como parte natural da paisagem jurídica.
Três nomes em mais de um século
Hoje, entre as onze cadeiras do STF, apenas uma é ocupada por uma mulher. As outras dez pertencem a homens. Das ministras que já fizeram parte da Corte, apenas Cármen Lúcia permanece em exercício. Ellen Gracie e Rosa Weber assumiram a partir dos anos 2000, ocupando a mesma vaga — ou seja, não de forma simultânea — e, com a saída de Rosa Weber, o cargo foi novamente preenchido por um homem, o ministro Flávio Dino.
Esse dado não é meramente numérico. Ele traduz um problema estrutural que reflete a distância entre o que o Brasil diz ser e o que efetivamente pratica quando o assunto é representatividade.
O espelho da democracia
Essa digressão histórica da mais alta instância da Justiça revela o retrato da própria sociedade. Um país que se reconhece plural, diverso e democrático deve enxergar o pluralismo não como adorno, mas como fundamento da legitimidade do poder.
A composição de uma corte constitucional não é apenas um ato de escolha individual do presidente. É uma decisão que espelha o tipo de Justiça que se deseja construir. Um tribunal plural é condição para uma democracia efetiva.
Como se escolhe um ministro
No Brasil, a indicação de ministros do STF é ato de competência exclusiva do Presidente da República, conforme o artigo 101 da Constituição Federal de 1988. O texto estabelece três requisitos formais: ser brasileiro nato, possuir mais de 35 e menos de 70 anos e apresentar notável saber jurídico e reputação ilibada.
Após a indicação, o nome é submetido à sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal e, depois, à aprovação pelo plenário da Casa Legislativa.
Trata-se de um procedimento jurídico-político. Embora a decisão final seja presidencial, ela é atravessada por um jogo de forças entre legitimidade popular e poder institucional. Por isso, cada vaga aberta no Supremo se torna um espelho do momento histórico do país. E, justamente por isso, o clamor social é legítimo: a sociedade pode e deve reivindicar que a escolha represente sua própria diversidade.
O notável saber jurídico e suas distorções
O chamado “notável saber jurídico” tem sido interpretado de forma estreita e elitizada. Não é possível continuar fingindo que só existe notabilidade no mesmo círculo de sempre, masculino e branco.
O saber jurídico também nasce da escuta, da prática cotidiana, da defesa da vida e da justiça social. E é, frequentemente, mais notável nas mulheres juristas, que constroem suas trajetórias em meio a resistências e desigualdades.
A pergunta que não quer calar é simples e poderosa: por que não ela?
O silêncio sobre pessoas negras
Se a ausência de mulheres é gritante, a ausência de pessoas negras é ensurdecedora.
Atualmente, há zero pessoas negras na composição do STF. Em toda a história, apenas três homens negros ocuparam essas cadeiras: Pedro Lessa (1907), Hermes Lima (1963) e Joaquim Barbosa (2003) (FAIRPLANET, 2023).
Trata-se de um apagamento histórico que reproduz a exclusão do corpo, da voz e da experiência de tantos brasileiros que sustentam as bases deste país.
A coerência democrática
A escolha para o STF não pode se afastar da vontade popular que elegeu um projeto comprometido com justiça social e direitos humanos. O presidente é eleito pelo povo, e o povo é plural. Garantir que a composição da mais alta Corte reflita essa pluralidade é uma questão de coerência democrática.
Nenhuma luta vem do silêncio
Movimentos sociais, entidades jurídicas e coletivos de mulheres têm demonstrado, ao longo da história, que a pressão social é capaz de mover estruturas. Foi assim com o direito ao voto, com a Lei Maria da Penha, com a ampliação dos direitos reprodutivos e com a criação de políticas públicas de equidade. Nenhuma luta vem do silêncio.
A hora é agora
O clamor não é atual, mas segue sendo contemporâneo e necessário. Com a nomeação do ministro Flávio Dino, o Supremo, que havia alcançado o marco histórico de ter duas mulheres simultaneamente, voltou a contar com apenas uma. Um retrocesso evidente.
Agora, diante da abertura de mais uma vaga, o país tem a oportunidade de corrigir um curso histórico de invisibilização. Nomear uma mulher, especialmente uma mulher negra, não seria um gesto de benevolência, mas de justiça histórica, social e democrática.
A Constituição já deu as diretrizes.
O povo já manifestou sua vontade.
O que falta é coragem política para transformar o que é possível em real.
A pergunta, portanto, permanece aberta: por que não ela?
Referências
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Linha sucessória – quadro atual (18 out. 2025). Brasília: STF, 2025. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/anexo/linha_sucessoria_quadro_atual_18out2025.pdf. Acesso em: 27 out. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). História das ministras do STF. Brasília: STF, 2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br. Acesso em: 27 out. 2025.
FAIRPLANET. Brazil hopes for first black woman on Supreme Court. 2023. Disponível em: https://www.fairplanet.org/editors-pick/brazil-hopes-for-first-black-woman-on-supreme-court/. Acesso em: 27 out. 2025.