Foto: Freepik
No Brasil, 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos já usam a internet, e 83% têm perfis em plataformas como WhatsApp, Instagram, TikTok e YouTube, segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, do Cetic.br, divulgada em 2024. O cenário preocupa especialistas, que alertam para os riscos da exposição precoce e da adultização infantil nas redes.
“Lya Luft nos avisa que ‘a infância é um chão que pisamos a vida inteira’. As demandas que estamos criando para as crianças no mundo digital causam impactos na infância e na vida futura”, diz a pedagoga e doutora em Educação Anna Líssia.
Cada vez mais, as crianças têm desenvolvido uma preocupação com a aparência física e com os padrões de beleza. A especialista ressalta que essa preocupação compromete a potência de viver a experiência da infância, um período em que a criança está focada no presente, nas brincadeiras e na observação do seu entorno, pontos de aprendizagem essenciais que servirão de alicerce para as próximas etapas da vida.
“Nesse contexto em que estamos inseridos, a criança antecipa questões do mundo adulto, que nem sempre são saudáveis para os próprios adultos, e deixa de experienciar seu tempo-espaço de ser criança”, afirma a pedagoga.
Crianças “influencers” e adultização

O termo “adultização” ganhou destaque após o influenciador Hytalo Santos ser preso, acusado de, entre outros crimes, trabalho infantil ao expor menores de idade em situações vexatórias nas redes sociais.
“Quando uma criança ou adolescente assume o papel de ‘produtora de conteúdo’, passa por um processo de adultização precoce, priorizando performance, aparência e aprovação do público em detrimento de ser criança”, explica a psicóloga infantil Gabriele Calixto.
A exposição precoce nas redes também está relacionada a maiores índices de ansiedade, depressão, baixa autoestima e distorções da imagem corporal. A psicóloga destaca ainda que o contato intenso com as redes sociais pode comprometer funções importantes, como o sono e a atenção, que são essenciais para o desenvolvimento da criança.
“Esse cenário pode favorecer o desenvolvimento de transtornos psicológicos ou intensificar dificuldades já existentes”, conta.
Proteger também é deixar ser criança
Embora não exista um nível de exposição “segura” nas redes, a especialista explica que é possível reduzir os riscos evitando a divulgação de conteúdos inadequados, constrangedores e informações pessoais, como endereço, rotina e escola, além de limitar ao máximo a participação da criança em contextos de exposição pública.
“A regra geral deve ser o respeito à privacidade da criança e à preservação da sua infância”, diz. Ainda segundo a psicóloga, a infância precisa ser vivida com liberdade para brincar, explorar e experimentar o mundo real.
“Quando as redes são introduzidas de forma precoce, roubam esse espaço para o desenvolvimento saudável. O papel dos pais é atuar como mediadores e protetores”, reforça.
O que diz a lei

A legislação brasileira estabelece diretrizes que regulamentam a atuação de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Segundo Laryssa Matias, advogada especializada em Direito Digital, essas normas visam proteger os menores da exposição e da adultização, garantindo os direitos previstos na Constituição Federal.
Ela cita o Estatuto da Criança e do Adolescente Digital (ECA Digital) que determina que as plataformas digitais adotem medidas para impedir que crianças e adolescentes acessem conteúdos ilegais ou impróprios.
Ainda segundo a advogada, quando um conteúdo publicado nas plataformas gera remuneração, pode ser enquadrado como trabalho infantil, já que há exploração da imagem como forma de atividade laborativa.
Entre os dispositivos legais que tratam do tema, ela cita o artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, que proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14.
A especialista explica que o conceito de trabalho infantil envolve também a utilização da força de trabalho ou da imagem da criança em benefício econômico de terceiros, como pais, empresas ou agências. No Brasil, isso pode ser comparado ao trabalho artístico infantil, permitido apenas mediante autorização judicial e acompanhamento do Ministério Público e do Juizado da Infância.
“Assim, a exposição só é enquadrada como trabalho infantil quando há ganho econômico direto ou indireto, ou seja, remuneração, principalmente por meio de publicidade”, explica.
A responsabilidade das plataformas digitais
Segundo Laryssa, as plataformas podem ter responsabilidade direta na exposição de crianças em conteúdos que configurem trabalho infantil. Elas podem ser responsabilizadas por omissão diante de denúncias de exploração ou quando lucram diretamente com conteúdos que exploram crianças.
A advogada explica que, nesses casos, é preciso responsabilidade solidária, conforme o princípio da proteção integral previsto no ECA. Essa responsabilidade se estende também a pais e responsáveis, que, em casos de descumprimento, podem responder civil e penalmente.
Regulamentação e políticas públicas
A pesquisadora Anna Líssia defende que é necessária uma regulamentação mais clara do uso das redes, não apenas para as crianças, mas também para outros grupos etários.
Ela lembra que esses espaços têm sido utilizados para práticas de violência e disseminação de desinformação, o que expõe as crianças a ambientes nocivos.
Além da responsabilização das plataformas, a pedagoga ressalta a importância de investir em políticas públicas de conscientização sobre os riscos da exposição digital e em monitoramento efetivo do acesso infantil aos conteúdos online, uma vez que as restrições de idade nem sempre são garantidas pelas plataformas.
“Toda a sociedade é responsável pela garantia de infâncias saudáveis para nossas crianças. Precisamos discutir políticas públicas que garantam uma infância segura e com direitos preservados”, ressalta.