Relacionamentos amorosos podem ser fonte de pertencimento e cuidado. Para muitas mulheres autistas, porém, o amor vira também lugar de sobrecarga, confusão e dor. Não porque sejam “ingênuas” ou “fracas”, mas porque certas características do perfil feminino do autismo, como camuflagem social, hiperempatia, leitura literal, necessidade de previsibilidade e histórico de invalidação, cruzam com dinâmicas típicas de relações abusivas (love bombing, controle sutil, gaslighting, reforço intermitente).
O resultado é um terreno propício à dependência emocional, em que a própria percepção sobre o que é amor vai sendo distorcida. Este texto é um mapa para reconhecer riscos e construir rotas de proteção.
O “algoritmo” da vulnerabilidade
Mulheres autistas costumam aprender cedo que “dar certo socialmente” exige observar, decorar e performar roteiros. Essa camuflagem ajuda a sobreviver, mas cobra um preço: cansa, reduz o acesso a pistas internas (interocepção) e faz com que critérios de segurança venham de fora (“se ele disse que me ama, devo estar segura”). Ao mesmo tempo, a hiperempatia e o senso de justiça podem levar a uma leitura esperançosa do outro (“ele é assim porque sofreu”), postergando limites.
Outro fator é a leitura literal: quando o parceiro diz “nunca mais vou fazer isso”, a tendência é acreditar no dito, não na regularidade do comportamento. Some-se o histórico de bullying, invalidação ou isolamento e a necessidade de previsibilidade; agressões cíclicas com pedidos de desculpa e promessas funcionam como reforço intermitente (às vezes dói, às vezes vem afeto), criando um vínculo especialmente difícil de quebrar. Por fim, scripts de gênero (“seja compreensiva”, “dê mais uma chance”) operam como cola.
Como a dependência emocional se instala?
Abusos raramente começam gritando. Em geral, vem primeiro um love bombing: intensidade, mensagens constantes, promessas grandiosas, fusão rápida. Para quem sempre precisou “merecer ficar” nos vínculos, a sensação inicial é de alívio (“finalmente, alguém me escolheu”).
Aos poucos, surgem críticas mascaradas de cuidado (“essa amiga te influencia mal”), controle logístico (“me manda localização para eu te buscar em segurança”), regras unilaterais (“não fale com X”), depreciação de interesses e isolamento discreto. Quando a mulher reage, aparece o gaslighting (“você está exagerando”, “você entendeu errado”).
Em mulheres autistas, o gaslighting funciona com eficiência porque planta dúvida onde já existe esforço para interpretar sinais sociais. O efeito é corrosivo: ela começa a desconfiar menos do comportamento do outro e mais da própria percepção. A autoestima adoece e, com ela, a margem de manobra.
Fique atenta às Red flags (bandeiras vermelhas)!
• Pressa em fundir a vida: “te apresentar para minha família em 1 semana”, senhas compartilhadas, decisões grandes sem tempo.
• Teste de lealdade: “se me amasse, faria X”, “prova que confia”.
• Ciúme como romantização: controle de roupas, agenda, amigos sob a desculpa de “cuidar”.
• Crítica ao seu jeito de ser: “você é fria/estranha/difícil”, com pedidos para “ser mais normal”.
• Mudança de versão (gaslighting) e culpa invertida: “você me provocou”, “foi brincadeira”.
• Reparações por presentes/luxo em vez de mudança de comportamento.
• Crescimento do medo: você passa a evitar falar, pedir, errar.
“Mas ele também sofre…” Compaixão não é licença para abuso
Hiperempatia não é causa de abuso; quem abusa é responsável pelo que faz. Porém, ela pode prender no papel de cuidadora-salvadora: você passa a organizar o cotidiano para reduzir “gatilhos” do outro, enquanto os seus limites murcham. Com o tempo, a relação deixa de ser um espaço de reciprocidade e vira gestão de crise. Compaixão madura tem dois pilares: responsabilidade (cada um pela própria regulação) e limite (ninguém tem o direito de ferir).
Autismo feminino e a “dúvida eterna”
Algumas mulheres autistas descrevem alexitimia (dificuldade em nomear emoções) e interocepção irregular (perceber mal sinais do corpo). Numa relação abusiva, isso produz atraso de alarme: o corpo já sofre (insônia, dor, fome caótica), mas a mente segue distribuindo desculpas. Um indicador objetivo que ajuda muito é observar padrões: o que acontece depois de você colocar um limite? O outro aumenta respeito ou aumenta retaliação? A realidade repetida é melhor bússola do que promessas.
Como proteger-se (e continuar capaz de amar)
- Regras de ouro pessoais (contrato consigo mesma)
- Comunicação explícita e curta
- Rede de realidade
- Terapia orientada a trauma e limites
- Ajustes sensoriais
Curando a ideia de amor
Romper o ciclo não é só “sair de uma relação”. É reaprender o que é amor. Para muitas mulheres autistas, isso inclui substituir a métrica “fui escolhida” por “sou respeitada” e trocar “dou conta de qualquer coisa” por “não preciso me machucar para merecer ficar”. Na prática, amor seguro se reconhece por: previsibilidade de cuidado, reparos consistentes após erro, liberdade sem retaliação e reconhecimento do seu jeito de funcionar (sensorial, social, rotina).
“Amor não exige camuflagem. Quando precisa virar personagem para caber, não é amor. É sobrevivência.”
Com muito carinho e afeto
Ana Paes – CRP15/1965
Psicóloga/Neuropsicóloga
Nota da autora: Este conteúdo é informativo e não substitui avaliação individual. Em situações de risco, busque apoio especializado e a rede de proteção local. Cuidar de si não é egoísmo, é o alicerce de qualquer amor possível.