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Mães, santas e silenciadas: o preço da maternidade idealizada

Foto: Freepik

Durante séculos, construiu-se no Brasil a ideia de que o valor da mulher estava no quanto ela conseguia ser mãe abnegada: dedicada, paciente, resistente e sempre disposta a se sacrificar. A historiadora Mary Del Priore mostra como, desde o período colonial, a mulher foi empurrada para dentro de casa e confinada ao papel de cuidadora. A imagem da “santa mãezinha” passou a ser celebrada, mas, por trás dela, havia uma forma sofisticada de controle social.

Essa construção não ficou no passado. Ela continua atravessando a vida real de muitas mulheres hoje. Pense na cobrança para que a mãe nunca se canse, nunca reclame, nunca falhe. Ou na romantização da “guerreira” que dá conta de tudo sozinha. Parece elogio, mas, na prática, é uma prisão. Quando a maternidade é vista como destino e sacrifício natural, a sociedade se sente autorizada a abandonar as mulheres à própria sorte.

E na vida prática?

• Nos processos judiciais, isso aparece todos os dias: mães sobrecarregadas que carregam sozinhas a responsabilidade pelo sustento e cuidado dos filhos, enquanto pais ausentes são tratados com indulgência. Quando um pai “ajuda”, recebe aplausos; quando uma mãe falha, é julgada duramente. O Judiciário, ainda impregnado dessa herança cultural, cobra da mãe uma dedicação quase santa e, muitas vezes, normaliza a omissão paterna.

• Na vida cotidiana, isso se revela quando a mãe que se queixa de cansaço ou pede ajuda é chamada de “fraca” ou “ingrata”. Ou quando a mulher que escolhe não ser mãe é tachada de incompleta, como se sua identidade dependesse da maternidade.

• Na vida profissional, surge no olhar desconfiado sobre a advogada, a médica ou a professora que precisa sair mais cedo porque o filho adoeceu — como se o cuidado fosse um problema privado e não uma questão social compartilhada.

O impacto silencioso

Essa idealização cobra um preço alto: muitas mulheres sofrem em silêncio, acreditando que falhar como mãe significa falhar como pessoa. Isso gera solidão, adoecimento emocional e até dificuldade de reivindicar direitos, porque a expectativa de ser “forte” e “resistente” faz com que muitas deixem de pedir ajuda.

A maternidade, quando idealizada, deixa de ser uma escolha ou uma experiência plural e passa a ser um fardo imposto como destino. Esse fardo atravessa os tribunais, os empregos, as relações afetivas e a forma como as mulheres enxergam a si mesmas.

E se a gente virasse a chave?

Reconhecer que ser mãe não significa ser santa é um ato político. É entender que a maternidade é também trabalho invisível — e, como todo trabalho, deve ser dividido, apoiado e valorizado. É cobrar que a responsabilidade com os filhos seja equilibrada entre homens e mulheres. É exigir que o sistema de Justiça e a sociedade deixem de romantizar o sacrifício feminino e passem a enfrentar a desigualdade real que ele esconde.

Talvez o maior gesto de amor coletivo que possamos construir seja libertar as mulheres da obrigação de serem perfeitas. Permitir que sejam humanas, com direitos, escolhas e até falhas. Porque, ao contrário do que nos ensinaram, uma boa mãe não é aquela que se sacrifica até desaparecer, e sim aquela que pode existir inteira — inclusive fora da maternidade.

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