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Por Bruna Sales
“Eu aprovo, eu sou a favor da violência contra a mulher. Sim, quando um homem bate na mulher, eu aprovo. Tem mulher que merece apanhar.” Essa fala foi da vereadora Elizabeth Maciel de Souza (Republicanos-AM), conhecida como Betinha.
Essa declaração, repetida em diferentes versões ao longo da história, não é apenas uma opinião: é um manifesto de violência. Quando dita em espaços de poder, como tribunas legislativas, carrega ainda mais peso. Não se trata de uma fala isolada, mas de um discurso que ecoa séculos de silenciamento, culpabilização e descrédito das mulheres.
A naturalização da violência contra a mulher encontra terreno fértil quando representantes eleitos, investidos de autoridade, usam a palavra não para construir direitos, mas para corroê-los. Nesse momento, o discurso deixa de ser individual e se torna institucional. O púlpito não é neutro: ele empresta legitimidade.
O mito da denúncia falsa
Um dos principais argumentos usados para relativizar a violência de gênero é o da suposta “indústria de falsas denúncias”. A retórica de que mulheres inventam agressões para “destruir a vida de homens” não se sustenta em dados oficiais. Pelo contrário, pesquisas do Ministério da Justiça e do CNJ apontam que o índice de denúncias infundadas é mínimo — menos de 2% dos casos, percentual inferior ao de falsas denúncias em outros tipos de crime.
Ou seja, a exceção vira regra para quem deseja desacreditar o sistema de proteção às mulheres. Esse mito cumpre um papel claro: deslegitimar a palavra feminina, reforçando o estigma de que a mulher é manipuladora, vingativa ou emocionalmente instável. No Direito, isso aparece em audiências em que vítimas precisam repetir exaustivamente suas dores para “provar” que sofreram.
Violência como herança cultural
Pierre Bourdieu (1999) chamou de violência simbólica o mecanismo que faz desigualdades parecerem “naturais”. Quando alguém em posição de poder afirma que “mulher merece apanhar”, não está apenas emitindo uma opinião pessoal, mas reatualizando um dispositivo cultural que legitima agressões físicas e psicológicas já normalizadas no cotidiano.
Essa legitimação é perigosa porque se soma ao silêncio: mulheres deixam de denunciar, temendo não apenas o agressor, mas também o descrédito das instituições. Quando a própria autoridade reforça esse descrédito, o ciclo da violência ganha mais uma engrenagem para se perpetuar.
A responsabilidade do Direito
O ordenamento jurídico brasileiro já consolidou que a violência contra a mulher é violação de direitos humanos. Esse marco se fortaleceu com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e com a adesão a tratados internacionais como a Convenção de Belém do Pará.
Essas normas não são formalidades: representam o compromisso de que a violência de gênero não pode ser relativizada nem justificada por experiências pessoais ou crenças individuais. Quando representantes públicos usam casos particulares para minimizar a violência, desconsideram a universalidade dos direitos fundamentais. O Direito não se molda a exceções: ele protege a coletividade.
Palavra é poder
Se a violência muitas vezes começa pela palavra — xingamento, desqualificação, ameaça —, é pela palavra também que podemos resistir. Cada vez que alguém em posição de poder relativiza a violência, cabe lembrar: palavra pública é ato político e jurídico.
Não se trata apenas da vereadora, do deputado ou de qualquer autoridade. Trata-se da sociedade decidir se continuará aceitando que a violência contra mulheres seja tratada como “opinião” ou se vai reafirmar: não é aceitável, não é legítimo, não é brincadeira.
O Direito, afinal, também se faz de palavras. Mas, ao contrário das falas que violentam, suas palavras devem construir pontes de proteção.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2023. Brasília: CNJ, 2023.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção de Belém do Pará. 1994.